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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonaro na ONU: Rosário de mentiras e mensagem às vacas gordas

Na ONU, Bolsonaro dirige novamente seu discurso às pautas ultraconservadoras  - AFP
Na ONU, Bolsonaro dirige novamente seu discurso às pautas ultraconservadoras Imagem: AFP

Colunista do UOL

24/09/2021 04h00

Antes de completar o primeiro minuto de discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU na terça-feira (20), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já havia dito que o Brasil tem um presidente que "acredita em Deus, valoriza a família e é leal ao seu povo". Também falou em conceder vistos a "cristãos perseguidos" e acrescentou que o país estava "à beira do socialismo" — em reiterado (e desesperado) aceno à sua base ultraconservadora.

Bolsonaro, que foi ridicularizado pela imprensa do mundo todo e por autoridades políticas por seu posicionamento antivacina, rezou ainda "um rosário de mentiras e distorções" em seu discurso, como apontou a agência de checagem de notícias Aos Fatos, e figurou cenas patéticas como a da pizza que comeu em pé na rua por — sem comprovante de vacina — ter sido barrado em um restaurante.

E, claro, para coroar a viagem — como o roteiro dessa nova temporada de Brasil é ruim, porém o roteirista é inegavelmente bom de plot twist — o ministro da saúde brasileiro, Marcelo Queiroga, não pôde voltar ao Brasil com a turma e teve de ficar nos Estados Unidos em quarentena porque foi diagnosticado com covid-19.

Sim, o ministro que mostrou o "dedo do meio" a manifestantes. Sim, o ministro de um país com quase 600 mil mortos, que desrespeita o sofrimento do povo, dificulta o acesso às vacinas, repete discursos negacionistas e agora estampa jornais internacionais por ter exposto centenas de pessoas ao vírus.

Mas voltando às vacas gordas — bem gordas se lembrarmos que grupos ultraconservadores antidireitos movimentaram mais de 700 milhões de dólares apenas na Europa nos últimos 10 anos — Bolsonaro novamente usou, em seu discurso na ONU, palavras-chave para se comunicar com essa base composta por um grupo bastante específico. É importante levar em conta também que o fiasco do "golpe" do 7 de Setembro e o subsequente pedido de desculpas de Bolsonaro estremeceram bastante essa relação.

"O contexto é de derretimento do apoio do segmento evangélico a Bolsonaro. Quem vive o cotidiano e a carestia que o aflige se sente traído e avalia que Deus não está acima de todos nesta situação", explica a pesquisadora e doutora em ciências da comunicação Magali Cunha.

"O grupo ainda segue como base forte e privilegiada do governo, afinal, os 29% de evangélicos que atribuem 'bom e ótimo' ao governo na última pesquisa Datafolha não são desprezíveis. Tornou-se imprescindível, como estratégia de superação das baixas de apoio, manter esta base. O discurso na ONU, com acenos sobre concessão de vistos a 'cristãos afegãos' e defesa da liberdade religiosa (que significa liberdade a cristãos conservadores interferirem na agenda pública) e da família tradicional expressa bem isso."

Dois artigos assinados por Magali a partir de dados coletados pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), publicados essa semana, reafirmam que "a aliança com a parcela evangélica de perfil conservador continua sendo uma importante base de apoio para um governo federal desarticulado e sem projetos de apelo popular". Ainda, apontam que alguns acordos se iniciaram já em 2013, com o apoio de Bolsonaro ao pastor Marco Feliciano (à época PSC/SP), na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, e se consolidaram em 2016, com a filiação de Bolsonaro ao PSC.

"O compromisso foi materializado ainda em 2016, logo após o impeachment de Dilma Rousseff, em batismo no Rio Jordão, pelas mãos do Pastor Everaldo — presidente do partido à época e hoje preso acusado de corrupção — apesar de Bolsonaro continuar se apresentando publicamente como católico", explica o artigo.

Magali aponta ainda nos artigos que, como candidato, o presidente foi muito bem instruído no discurso que alimentou a pauta de costumes em sua campanha eleitoral, "afetando fortemente o imaginário evangélico conservador calcado em pilares como a proteção da 'família tradicional', defesa da heteronormatividade, controle dos corpos das mulheres e formação da juventude".

Pilares importantes em todo o mundo e que têm também sustentado políticas antigênero em toda a América Latina, como mostra outro estudo, realizado pelo Observatório de Sexualidade e Política (SPW), do qual falei na coluna da semana passada.

Além de um detalhamento importante nos cargos de religiosos no Executivo, os artigos de Magali dão conta de que o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos é o que tem mais religiosos do segmento na ocupação de cargos de liderança:

"Levantamento feito pelo pesquisador da UFRJ Alexandre Brasil Fonseca (não publicado e cedido ao ISER) mostra que, dos 44 cargos mais importantes do ministério, para além da ministra, diretorias, secretarias temáticas, secretarias adjuntas, coordenação geral de gabinete, assessorias especiais, chefia de gabinete, 15 são ocupados por evangélicos e outros três por pessoas que se identificam genericamente como cristãs, totalizando 18. Entre os 15, dez são lideranças ou membros das igrejas Batista, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Presbiteriana, Graça e Vida e IURD, e cinco são evangélicos de igrejas não identificadas. Há ainda três diretores que se identificam genericamente como cristãos. Para além desses, atualmente em exercício, outros 11 foram empossados e deixaram o Ministério entre 2019 e junho de 2021. Desses, mais da metade eram pastores (seis)."

O artigo lembra ainda que "há nove católicos neste ministério, entre eles: a advogada Angela Vidal Gandra, ligada à União dos Juristas Católicos de São Paulo, filha do advogado Ives Gandra Martins, destacado integrante do Opus Dei, no cargo de Secretária Nacional da Família. Também o militar intendente da Marinha Eduardo Miranda Freire de Melo, que é o adjunto na Secretaria Nacional de Proteção Global e coordena o Programa Nacional de Direitos Humanos-III, outros quatro católicos de organizações "pró-vida" e "pró-família" ocupam diretorias e assessorias".

A pauta de trabalho que une evangélicos e católicos na pasta, segundo as pesquisas, é extremamente conservadora: "uma concepção restritiva de liberdade religiosa, 'defesa da família' (movimentos 'pró-vida' e antiaborto), posicionamento 'anti-ideologia de gênero' (contra direitos LGBTQIA+), apoio ao homeschooling e ao 'escola sem partido'".

Um exemplo prático do que prega esse ultraconservadorismo foi publicado na Agência Pública nesta semana. Apenas algumas semanas após o caso da menina de 10 anos que, grávida de um estupro, foi constrangida, coagida e exposta por grupos religiosos ligados à própria ministra Damares, segundo essa matéria da Folha de S.Paulo, outra menina, de 15 anos, passou por uma situação bastante semelhante.

Grávida de um estupro, teve o aborto legal negado por juíza religiosa que citou "direito do nascituro" na sentença e teria exposto o caso em grupos de juízes no WhatsApp. A adolescente, que só conseguiu realizar o aborto legal por um movimento do Ministério Público e de advogadas que assumiram seu caso, também precisou viajar com a mãe escondida para realizar o procedimento em outra cidade.

É a quem defende esse tipo de política e de ação que Bolsonaro dirige novamente seu discurso. Destilando seu rosário de mentiras e mirando as vacas gordas.