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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É urgente discutir cultura do estupro sem usá-la como fórmula de audiência

Você deve se lembrar de ao menos uma garota que foi sexualmente abusada em uma festa. Ou talvez você seja essa pessoa. - Getty Images/iStockphoto
Você deve se lembrar de ao menos uma garota que foi sexualmente abusada em uma festa. Ou talvez você seja essa pessoa. Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

01/10/2021 04h00

Um dia eu abri meu inbox no Facebook e havia a mensagem de uma adolescente dizendo que havia sido estuprada por um colega em uma festa enquanto estava inconsciente, engravidou e não estava conseguindo acesso ao aborto legal em sua cidade. Dizia que estava muito deprimida e pensando em suicídio.

Ela já tinha um filho do qual cuidava sozinha e estava desempregada. Morava com a mãe (que também estava desempregada) e, procurando por informações sobre direito ao aborto legal garantido por lei a (entre outras situações) vítimas de violência sexual, ela encontrou uma reportagem da Agência Pública sobre aborto legal no Brasil e nos procurou pedindo ajuda. Ao registrar boletim de ocorrência na delegacia, mostrando inclusive troca de mensagens em que o rapaz assumia o estupro, a menina ouviu coisas como "ninguém mandou beber", "estava lá porque quis" e "tem certeza que você não queria?".

Na época, ela conseguiu vir a São Paulo com o auxílio e assessoria de uma rede de mulheres e fez o aborto legal no hospital Perola Byington. Quando nos encontramos pessoalmente pela primeira vez, após o procedimento, ela contou que estava nessa festa, todos beberam bastante álcool, ela pediu para dormir um pouco e quando acordou estava nua, com o rapaz ao lado. Só havia entendido o que de fato aconteceu quando a gravidez se confirmou.

Me lembrei dessa história quando, na última semana, um reality show televisionado pela emissora do líder da Igreja Universal transmitiu ao vivo o que teria sido o estupro de uma moça que não estava em condições de consentir qualquer prática sexual.

Por um ou dois dias, as redes sociais foram tomadas pela indignação coletiva e o pedido de expulsão do homem do programa. Vídeos e áudios que "comprovariam o estupro" foram compartilhados à exaustão por veículos jornalísticos e influenciadores para que o tribunal da internet (eu, você) pudesse assistir, avaliar e opinar se "de fato" havia acontecido um estupro em rede nacional.

A hashtag do momento dizia "estupro não é entretenimento", mas... Se você clicou nesses vídeos e áudios, nessas matérias, se deu audiência, se compartilhou essas imagens e sons, não estaria provando justamente o contrário? Acho essa uma pergunta importante de se fazer porque um dia ela foi feita a mim.

Indignada, eu havia compartilhado em minhas redes pessoais o vídeo de uma mulher sendo humilhada por um prefeito. E alguém me questionou sobre revitimização e sobre seguir alimentando a exposição daquela mulher que já estava em uma situação de extrema vulnerabilidade. Sim, a pessoa tinha razão. Apaguei o post de compartilhamento, agradeci a reflexão e me desculpei publicamente.

Neste caso específico do reality, a audiência foi tanta que a emissora "novelizou" o assunto, deixou a polêmica crescer e só de fato expulsou o rapaz do programa quando os patrocinadores ameaçaram retirar o dinheiro.

É muito necessário discutir o estupro de pessoas em situação de vulnerabilidade e não consentimento — até porque essa situação é recorrente e nem sempre os limites são imediatamente claros, inclusive na mente de quem sofre o abuso. Aposto que se você fizer um exercício de memória, vai se lembrar de ao menos uma garota que foi sexualmente abusada em uma festa. Ou talvez você seja essa pessoa.

Vi um post no Instagram que dizia algo como "você já sofreu abuso sexual e só percebeu muito tempo depois"? Porque, além da clássica culpabilização da vítima, se identificar como vítima de violência sexual não é fácil — digo isso como jornalista que trabalha há mais de 15 anos denunciando violência de gênero e também como sobrevivente.

A linha é tênue, mas não invisível. E nossos papéis (o meu, o seu) nessas discussões são fundamentais na manutenção ou na desconstrução da cultura do estupro, na identificação do que é machismo estrutural e não um caso isolado, na defesa da equidade de direitos e do fim da violência de gênero.