Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Governo Bolsonaro quer tutelar seu útero, mas não se importa se você sangra
Se você tem um útero, este certamente não está sendo um bom momento para viver no Brasil. Em live transmitida nas redes sociais nesta quinta-feira (14), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) debochou do próprio veto ao trecho de um PL que previa distribuição de absorventes menstruais a pessoas em situação de vulnerabilidade: estudantes de baixa renda matriculadas em escolas públicas; mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema; presidiárias e apreendidas; e mulheres internadas em unidades para cumprir medida socioeducativa.
O presidente falou em "auxílio Modess", em alusão a uma marca de absorventes que deixou de existir no Brasil há mais de 10 anos. Risadas ao fundo. "Vamos lá, Parlamento, vamos derrubar o veto que eu cumpro aqui. [..] A gente vai se virar e vamos estender o auxílio Modess, é isso mesmo? Auxílio Modess? Absorvente para todo mundo", provocou, devolvendo ainda a responsabilidade ao Congresso.
Como escrevi na última coluna, a pobreza menstrual é um problema muito sério no Brasil e o projeto de lei da deputada Marilia Arraes (PT-PE) e relatoria no Senado de Zenaide Maia (PROS-RN) pretendia ajudar 5,6 milhões de pessoas. Segundo pesquisa da UNFPA e UNICEF publicada este ano no Brasil, mais de 4 milhões de jovens não dispõem de itens básicos de higiene nas escolas quando menstruam e mais de 700 mil vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em casa.
Mas enquanto o presidente debocha da precariedade menstrual, a tutela de nossos úteros segue sendo uma das bandeiras mais importantes para este governo. Na última semana, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados debateu com padres, juristas, representantes de organizações antiaborto e integrantes declaradamente militantes religiosos "pró-vida" do ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, durante mais de 4 horas, o PL 434/2021 de autoria da deputada Chris Tonieto (PSL/RJ).
O projeto chamado de "Proteção Integral do Nascituro" prevê, dentre outras coisas, que a "personalidade civil do indivíduo humano começa com a concepção", o que significa que, se aprovado, pílulas do dia seguinte seriam proibidas, assim como a interrupção da gravidez em casos de estupro, anencefalia do feto e risco de vida para a mulher.
Em casos de estupro o projeto fala ainda em um salário mínimo (o que ficou conhecido como Bolsa Estupro em projeto parecido) e em procurar o genitor para que arque com as despesas. Ou seja: procurar o estuprador para dar pensão a um filho gerado da violência. Na realidade, nos casos específicos de violência sexual contra crianças e adolescentes seria bastante fácil encontrá-los: se a cada 8 minutos um estupro acontece no Brasil, 58,8% das vítimas têm no máximo 13 anos e 85,7% são do sexo feminino.
Segundo dados do próprio Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos divulgados no início deste ano, 67,30% dos suspeitos de estupro são familiares.
Na reunião, mediada por Tonietto no último dia 8, foram usados especialmente argumentos religiosos, pseudociência e até o comentário de que existem mulheres que optam por não abortar em troca de uma cesta básica. Uma das falas mais radicais e cheias de jargões religiosos foi a do representante do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Rodrigo Rodrigues Pedroso que, segundo a deputada, contribuiu pessoalmente para o Estatuto do Nascituro. Ele inicia sua fala, como representante do Ministério, com "louvado seja nosso senhor Jesus Cristo".
Veja, se você sangra —seja porque tem útero e menstrua todo mês ou seja porque sofre violência sexual, seja porque pode morrer em uma gestação de risco, não importa para este governo, desde que ele tenha a tutela sobre seu corpo, sua gestação e seu parir. Uma vez no mundo, essas crianças também deixam de ser assim tão importantes.
Segundo dados divulgados no último dia 12 pela Fundação Abrinq, cerca de 18,8 milhões de meninos e meninas de até 14 anos passam fome e ao menos 9 milhões vivem em situação de extrema pobreza, com renda per capita mensal de no máximo R$ 275. A combinação da crise econômica com a má gestão da crise sanitária, o alto desemprego, a assistência social insuficiente e o aumento do preço dos alimentos tem refletido o aumento da pobreza e da fome que afeta os brasileiros.
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