Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Em novo livro, Eliane Brum fala sobre a devastação da floresta amazônica
Sempre me fascinou a maneira como algumas pessoas juntam letras e palavras —as mesmas que estão por aí, que são dadas a mim e a você— e elaboram algo totalmente novo, emocionante, que reverbera dentro do peito. Costumo dizer que existem frases e elaborações tão preciosas que tenho vontade de transformar em amuleto, guardar numa caixinha, para carregar junto ao corpo. Como em uma reação química, a junção desses elementos criam às vezes um diamante, às vezes uma explosão.
"Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo", novo livro da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum, lançado recentemente pela Companhia das Letras, é essa revolução entre capas. É sobre o banzeiro mas é também o próprio banzeiro, está dentro dele e nos carrega.
O livro mescla relato pessoal e investigação jornalística para denunciar a escalada da devastação da floresta, que acelera a um ponto de não retorno e reflete ainda sobre o impacto das ações da minoria dominante que levaram o mundo ao colapso climático e à sexta extinção em massa das espécies. No caminho, a autora encontra com seres da floresta, conta sobre como decidiu viver em Altamira, no Pará, em 2017 e mostra como raça, classe e gênero são temas transversais e estão implicados no destino da Amazônia e do mundo todo.
'Território de brabeza do rio'
O Banzeiro em si, Eliane nos apresenta logo na introdução do livro:
Banzeiro é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É onde com sorte se pode passar, com azar não. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar. Quem rema espera o banzeiro recolher suas garras ou amainar. E silencia porque o barco pode ser virado ou puxado para baixo de repente. Silencia para não acordar a raiva do rio. Não há sinônimos para banzeiro. Nem tradução. Banzeiro é aquele que é. E só é onde é. Desde que me mudei para a Amazônia, em agosto de 2017, o banzeiro se mudou do rio para dentro de mim. Não tenho fígado, rins, estômago como as outras pessoas. Tenho banzeiro. Meu coração, dominado pelo redemoinho, bate em círculos concêntricos, às vezes tão rápido que não me deixa dormir à noite. E desafina, com frequência sai do tom, se torna uma sinfonia dissonante, o médico diz que é arritmia, mas o médico não sabe de corpos que se misturam.
Como complemento, indico a entrevista de Eliane Brum ao podcast Pauta Pública, publicada na sexta-feira (5), em que ela fala sobre o livro, sobre crise climática (muito importante especialmente neste momento em que o mundo todo discute o futuro na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima em Glasgow, na Escócia), sobre o atual governo e sobre quando se entendeu jornalista: aos 5 ou 6 anos de idade, quis botar fogo na Prefeitura com uma caixinha de fósforos para vingar o pai, humilhado por um prefeito, na época da ditadura militar.
O plano obviamente fracassou, mas ela diz que esse seria seu primeiro ato subversivo (obviamente sem sucesso) e que descobriria a escrita como forma de por no mundo sua inquietude, como forma de não matar e de não morrer.
Deixo aqui mais um trecho de Banzeiro òkòtó:
"Eu escuto as vidas barradas do Xingu. E fracasso em convertê-las em palavras. Fracassar é uma condição de quem escreve. A vida sempre escapa. A vida transborda, a vida é maior. A vida flui na palavra, mas não aceita ser barrada por ela. A vida é rio que não se submete a hidrelétricas. Quem me ensinou que escrever é um ato do corpo e no corpo foi o rio Xingu. Desde então, eu sei. Só o que tenho para oferecer sou eu mesma, esse corpo feito de palavras-cicatrizes que, ao escrever sobre outres, tatuei em mim. Como uma transmutação, a sina inescapável da contadora de histórias que, ao escrever no papel ou na tela, escreve também no próprio corpo, com tinta de sangue. É esse corpo esburacado por letras, tragicamente insuficiente, que inscrevo aqui. Este meu corpo presente."
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