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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mendonça no STF: problema não é a fé de Michelle, mas o risco de retrocesso

A primeira-dama Michelle Bolsonaro ao lado do ministro André Mendonça, indicado ao STF pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) - Redes sociais
A primeira-dama Michelle Bolsonaro ao lado do ministro André Mendonça, indicado ao STF pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) Imagem: Redes sociais

Colunista de Universa

10/12/2021 08h48

"A nomeação de André Mendonça fecha um círculo de aparelhamento evangélico no governo". Assim que assisti ao vídeo que mostra a primeira-dama Michelle Bolsonaro, pastores e membros do governo celebrando a aprovação de Mendonça para o Supremo Tribunal Federal entoando "Glória a Deus", orando e falando em línguas estranhas (o termo é usado assim dentro das igrejas evangélicas), me lembrei dessa previsão feita pela pesquisadora Brenda Carranza, professora da PUC de Campinas, em entrevista à Agência Pública em 2020.

Na época, ela comentava o anúncio de Mendonça para a chefia do Ministério da Justiça em substituição a Sérgio Moro. E afirmava que a promessa feita pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) de colocar um ministro "terrivelmente evangélico" no Supremo estava perto de se tornar realidade e seria mais um passo no plano dos extremistas cristãos para ocupar os Três Poderes: "Temos três posições: a ocupação do Legislativo, a partir de uma bancada evangélica; a ocupação do Executivo, com uma confessionalidade cristã dúbia enquanto sua identidade católica ou evangélica. E agora pretende-se fechar o círculo: a ocupação do Judiciário e um aparelhamento do Estado no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, com uma identidade cristã".

Na entrevista, a professora também chama a atenção para algo que os pesquisadores vêm dizendo desde a eleição do atual governo: que é através da defesa das pautas chamadas "morais" - na verdade pautas antidireitos - que Bolsonaro mantém firme sua base de apoio composta por líderes religiosos, apesar de todas as crises.

Foi com a defesa dessas bandeiras (acabar com uma suposta doutrinação marxista e uma fantasiosa ideologia de gênero nas escolas, o compromisso em não avançar com relação aos direitos reprodutivos e a defesa de um modelo heteronormativo de família) que ele ganhou seus votos mais fiéis.

Michelle roubou atenção, mas foco deve ser Mendonça

Como eu já mencionei algumas vezes aqui na coluna, essa não é uma estratégia original: vários governos autoritários e ultraconservadores atuais usam dos mesmos discursos violentos e nomeiam os mesmos inimigos. O aluguel desse apoio também não é barato: em março deste ano foi permitido pelo Congresso, a pedido de Bolsonaro, o perdão de R$ 1,4 bilhão em dívidas de igrejas.

O vídeo da comemoração de Michelle viralizou, especialmente por ela estar falando em línguas estranhas, o que pode causar estranhamento para quem não compartilha da sua fé, mas é uma manifestação bastante comum, principalmente nas igrejas evangélicas pentecostais que acreditam nos dons do Espírito Santo.

Esse estranhamento rapidamente roubou a atenção do que realmente importa. Ainda pior: deu base para que a esposa de Bolsonaro começasse a falar em perseguição religiosa.

De fato, o problema não é a demonstração de fé da primeira-dama, mas a instrumentalização de um Estado Laico para a imposição de determinadas práticas e crenças religiosas por meio de projetos de lei, políticas públicas, uso de verbas e recursos que favorecem determinado público em detrimento de outro. Que garantem os direitos de alguns e ameaçam os de outros.

Aborto e direitos LGBTQI+

O foco neste caso deveria permanecer na figura de André Mendonça, que tem em sua trajetória no mundo jurídico um posicionamento claro com relação a algumas pautas. Por exemplo: durante um debate sobre o direito das mulheres infectadas com o vírus zika interromperem a gravidez, o novo ministro disse que era "lamentável, um retrocesso para a sociedade" e comparou erroneamente a discussão a uma suposta segregação de espécies "presente no regime nazista".

Também defendeu que os cristãos podem questionar o "homossexualismo" com base em suas convicções religiosas e que os direitos às liberdades de expressão e religiosa são alienáveis. Vale lembrar que, em 1990, a OMS entendeu que a homossexualidade não é doença e, por isso, tirou oficialmente o sufixo "ismo" da palavra.

Na sabatina no Senado, André Mendonça defendeu posse e porte de armas e, em abril deste ano, como ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), pediu no STF pela reabertura de igrejas e templos durante a pandemia de coronavírus, em uma sustentação toda baseada na Bíblia com direito à frase: "Os religiosos não estão matando pela sua fé, mas estão dispostos a morrerem por ela".

André Mendonça também é bastante próximo da Anajure (Associação de Juristas Evangélicos), organização fundada por Damares Alves que faz lobby por "valores cristãos" no Judiciário. A Anajure soltou inclusive uma nota oficial no dia 01, parabenizando Mendonça pela aprovação ao STF.

Por fim, vale lembrar que Bolsonaro é alvo de seis inquéritos no Supremo Tribunal Federal e que a instância tem barrado os desvarios do presidente em várias áreas e, justamente por isso, o presidente atacou e incitou seus seguidores a atacarem o STF em setembro.

A preocupação maior não deveria ser com a demonstração de fé de Michelle, mas sim com os riscos de retrocessos em direitos já conquistados e a possibilidade de não avançarmos por conta de um extremismo cristão que avança com sucesso sobre os Três Poderes.