Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Damares Alves precisa ser responsabilizada por seu cinismo político
Depois de atribuir o alto índice de violência sexual contra meninas no Marajó a uma suposta falta de calcinhas e ter sugerido como política pública a construção de uma fábrica de lingerie no arquipélago; depois de ter defendido a abstinência sexual como solução para a gravidez entre adolescentes e ter declarado que faria "salas cor de rosa" para atender vítimas de violência sexual; depois de ter agido para impedir que uma menina de dez anos estuprada por um parente tivesse acesso à interrupção da gestação garantida por lei, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, lançou nos últimos dias mais bombas ultraconservadoras e negacionistas, não apenas ineficazes mas irresponsáveis — para uma ministra de Estado — sem embasamento científico e altamente perigosas.
Uma delas foi a emissão, no dia 19 de janeiro, de uma nota técnica que se opõe ao passaporte vacinal e à obrigatoriedade da vacinação de crianças, e dizendo que o ministério disponibiliza o Disque 100 — principal canal e instrumento federal de denúncias para violações de direitos humanos — a pessoas antivacinas denunciarem suposta "discriminação". Isso no momento em que o Brasil volta ao patamar de quase mil mortes por coronavírus por dia e com a maioria dos casos graves em pessoas não vacinadas. Por considerar a conduta da ministra "digna de preocupação", a PGR (Procuradoria-Geral da República) deu dez dias para Damares se explicar.
Poucos dias depois, em vez de se manifestar com relação à morte brutal do congolês Moïse Kabamgabe, espancado até a morte no quiosque onde trabalhava como atendente na praia da Barra, no Rio de Janeiro, ou falar em qualquer tipo de providência oficial — que seria incumbência da pasta dos direitos humanos ou, no mínimo, algo esperado de uma ministra dos direitos humanos —, Damares silenciou e se ocupou com um evento, promovido pelo seu ministério, de lançamento da "Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência", em Brasília.
Na ocasião, disse que a rede social TikTok é usada por crianças e adolescentes para "venderem seus corpos" e associou, novamente de maneira absolutamente equivocada e sem qualquer lastro com a realidade, a gravidez na adolescência e infância ao aplicativo de vídeos: "Não vem papai e mamãe jogar no colo do Ministério da Saúde: 'Resolva, minha filha engravidou', depois que deixou sua filha de oito anos ir pro TikTok vender seu corpo. Uma coisa está muito atrelada com a outra", disse a ministra de um país com altos índices de violências sexuais contra crianças e adolescentes, na grande maioria das vezes cometidas por parentes e conhecidos das vítimas e com alto índice de subnotificação.
A ministra também falou novamente em "erotização precoce", apresentando em nova roupagem a ideia da abstinência sexual como solução para a gravidez entre adolescentes, e acrescentou que o governo Bolsonaro tem "coragem" de abordar esse tema. Damares disse ainda que recebeu críticas por ser fanática, por "querer proibir sexo entre adultos e crianças no Brasil" — o que, na verdade, já é crime segundo a lei — e defendeu que nos casos de gravidez na adolescência, "vida é vida" e que é contrária ao aborto — permitido por lei nos casos de violência sexual, anencefalia do feto e risco de vida para a pessoa que está gestando. "Nós não estamos aqui em uma guerra religiosa ou de costume, não".
Ainda nesta semana e, repito, ainda em silêncio sobre a morte brutal do congolês Moïse Kabamgabe, espancado até a morte no local onde trabalhava, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos publicou um vídeo no Twitter em que falava sobre as diferenças entre governos de esquerda e governos de direita, em que o primeiro fazia ações de "desprincesamento" de meninas enquanto o governo atual fazia um trabalho para transformar meninas em princesas. Não estou linkando o vídeo aqui de propósito.
Na primeira coluna que escrevi para Universa, disse que Damares Alves precisava ser responsabilizada e implicada em suas falas e ações como ministra de Estado e sigo defendendo isso.
Ela não é sua tia no grupo de Whatsapp da família, é alguém com o poder da caneta, que chefia orçamentos públicos, alguém que pode transformar ideias em políticas públicas que deveriam atender à população, sobretudo as pessoas em situação de vulnerabilidade.
Refletindo sobre essas suas últimas falas e ações, pensei em nomear como "delírio". Mas, felizmente (e diferentemente deste governo), fui ouvir quem entende do assunto — no caso a psicanalista Maria Silvia Borghese, que pôde elaborar a atuação da atual ministra muito melhor do que eu.
"Não chamaria de delírio, mas diria que é um sistema bastante perverso, estruturado, uma tentativa de puxar a sociedade para trás, em um movimento de regressão, como se pudesse voltar ao tempo da família como instância de controle e vigilância. Damares faz algo proposital e pensado de uma maneira articulada, algo que Adorno e os Frankfurtianos chamariam de 'má consciência', um cinismo calculado que trabalha o que o próprio Adorno vai chamar de irracionalidade objetiva, que é tentar transformar ou construir uma realidade a partir de uma irracionalidade, que no fundo é sustentada por um cinismo e por uma tentativa de manipulação, dominação e opressão. O que dá pra dizer então é que esse movimento da Damares é um movimento cínico, que se pauta em uma irracionalidade objetiva, que é orquestrado e pensado, uma pessoa que reproduz muito bem esse discurso de extrema-direita fascista, que infantiliza a sociedade. É um traço perverso. Narcisista perverso."
Não é delírio. É cinismo, narcisismo e perversidade.
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