Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Golpista do Tinder' terá reality de namoro: por que agressor vira herói?
"Bem feito", "merecido", " que mulheres idiotas", "interesseiras", "muito ingênuas" são alguns dos comentários mais gentis, encontrados nas redes sociais e reportagens, direcionados às mulheres que contaram suas histórias no documentário "O Golpista do Tinder", lançado pela Netflix há alguns dias. Em tom um pouco mais condescendente, alguns perfis que se apresentam como "feministas" — aqui é entre aspas mesmo, porque se dizer feminista e culpar as vítimas é uma contradição — falavam sobre "mulheres vulneráveis e sem informação, carentes, presas fáceis" para homens como Shimon Hayut, israelense que subtraiu mais de US$ 10 milhões por meio de golpes e esquemas que se iniciavam no Tinder.
O documentário, baseado em uma reportagem do jornal norueguês "Verdens Gang", mostra como Hayut (que utilizava várias identidades) construía a imagem de um homem bem-sucedido que vivia uma vida de luxo, impressionava mulheres com primeiros encontros cheios de atenção, mimos, viagens de jatinho e, então, construía uma relação de confiança e toda uma narrativa que levava suas namoradas (algumas já eram suas noivas) a conseguir grandes somas de dinheiro para "salvá-lo" de algum perigo.
Aqui vai um spoiler. Então, se você ainda não assistiu ao documentário, pule para o próximo parágrafo. Shimon Hayut chegou a ser preso, mas não por causa destes golpes, e já se encontra em liberdade.
Enquanto as mulheres contam que foram culpabilizadas pela opinião pública, tiveram suas vidas escrutinadas de maneira cruel após a corajosa denúncia que fizeram, o golpista do Tinder contratou recentemente uma agente famosa em Hollywood, com a ideia de criar um programa de namoro em que as competidoras disputam entre si por seu amor.
Hayut também pretende lançar um podcast e um livro. Alguma dúvida de que ele vai conseguir capitalizar mais alguns milhões? Eu não tenho.
Mas acredito que aqui tem dois pontos importantes. O primeiro é que, novamente, as vítimas foram julgadas e culpabilizadas, enquanto o agressor não apenas saiu ileso, como se tornou um herói, uma figura de meme, produto e produtor de capital. Mais um oferecimento do machismo estrutural capitalista.
E não é "culpa" do documentário, que mostra, de maneira bastante respeitosa com os depoimentos, como mulheres independentes eram enredadas a partir de um vínculo afetivo construído com dedicação, tempo e "provas de amor". Era a partir de uma suposta vulnerabilidade que Shimon Hayut aplicava seus golpes. "Preciso de ajuda", "apanhei", "vou morrer se você não me ajudar" são apelos bastante fortes em um relacionamento com vínculo afetivo, não?
O que leva ao segundo ponto: qualquer pessoa está sujeita ao estelionato sentimental. Inclusive mulheres independentes, generosas, fortes, feministas.
Após o lançamento do documentário, muitas mulheres também compartilharam suas histórias mais ou menos graves de vezes em que emprestaram dinheiro, pagaram contas, "salvaram a pele" de seus companheiros. Quase nunca, esses casos envolvem viagens em jatinhos, uma vida prévia de luxo ou um agressor envolvente e sedutor. Na grande maioria das vezes é sobre alguém tirando vantagem de um vínculo afetivo.
Vale dizer também que, no Brasil, induzir alguém a um erro com o uso de qualquer artifício para obter vantagens indevidas é crime, previsto no artigo 171 do Código Penal, que tipifica estelionato. E o uso dos afetos é uma condicionante, chamada de estelionato sentimental.
O que se vê na condução e repercussão do caso do "golpista do Tinder" só reforça o quanto a opinião pública e a Justiça ainda estão presas à lógica do machismo estrutural e do dinheiro, que pune corpos feminilizados e transforma agressores em heróis. Lucrativos heróis em série.
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