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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ministério da Saúde faz campanha antiaborto descarada em nova cartilha

O secretário de Atenção Básica do Ministério da Saúde, ginecologista Raphael Câmara, assina cartilha sobre interrupção de gravidez - Agência Brasil
O secretário de Atenção Básica do Ministério da Saúde, ginecologista Raphael Câmara, assina cartilha sobre interrupção de gravidez Imagem: Agência Brasil

Colunista do UOL

16/09/2022 04h00

Na mesma semana em que uma criança de 11 anos apareceu grávida de um estupro pela segunda vez, o Ministério da Saúde lançou a versão revisada da cartilha "Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento", direcionada à rede de atendimento em saúde. A versão original, de 2011, se chamava "Atenção Humanizada ao Abortamento - Norma Técnica" e só pelo título já é possível perceber a mudança de tom: Na primeira, atenção humanizada. Na versão do atual governo, prevenção, avaliação e conduta.

A criança de 11 anos que foi estuprada e engravidou pela segunda vez mora em Teresina com o pai e o filho da primeira gestação —que foi mantida por decisão dos responsáveis pela menina decidiram. Desta vez, a gravidez foi descoberta após o pai mandá-la para um abrigo junto com o filho por "mau comportamento". No abrigo, desconfiaram, testaram e constataram. Outra gestação, resultante de outro estupro. Ainda não se sabe o nome do agressor. Ninguém foi punido. Mas o Brasil todo já sabe, pois isso foi amplamente divulgado, que os responsáveis pretendem novamente recusar o aborto legal, um direito garantido por lei em casos de estupro, risco de vida à gestante ou anencefalia do feto.

A primeira versão da nova cartilha do Ministério da Saúde, de junho deste ano, ia contra o Código Penal ao dizer que "todo aborto é crime" e que não existia aborto legal no país —o que é mentira. Na versão revisada, este trecho foi removido, mas a cartilha segue com informações vagas, distorcidas e com afirmações como "quase todos os estudos sugerem". Que estudos? De onde? Quase todos os estudos do mundo inteiro?

Além disso, fala que o aborto não deve ser feito com base em "ideologia", alerta que mesmo o abortamento conduzido por médicos "não é isento de riscos, tendo provocado duas mortes nos últimos cinco anos", sem provas sobre a informação, e replica o dado falso de que "um quarto a um terço das mulheres com perda gestacional experienciam alguma repercussão negativa na saúde mental após o episódio". Esse número já foi amplamente negado por profissionais da saúde mental e me faz lembra outro dado: o de que, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), um terço das mulheres sofre violência física ou sexual. Esse sim um dado real, e a criança de 11 anos que engravida de estupros pela segunda vez é prova disso.

O documento também discorre sobre tratados internacionais em que o Brasil é signatário que reconhecem "o direito à vida como prioridade", ignorando convenientemente outros tratados, que versam sobre proteção a direitos reprodutivos e autonomia das mulheres, por exemplo. E cita a "Declaração do Consenso de Genebra", acordo antiaborto bastante polêmico e obscuro, criado pelos Estados Unidos e atualmente liderado pelo Brasil, que não tem peso de lei ou de tratado internacional.

A cartilha do Ministério da Saúde, que deveria orientar o atendimento de saúde à meninas e mulheres que engravidam de um estupro, correm risco de vida ou estão em situação de vulnerabilidade por qualquer tipo de abortamento, orienta que os profissionais de saúde notifiquem de forma compulsória casos de estupro que resultem em interrupção da gestação . Isso contraria portarias que dizem que a notificação só pode acontecer com autorização da vítima. Também não cita o alto índice de mortes maternas por abortamento como uma questão de saúde pública. É, na verdade, uma grande campanha antiaborto.

E nessa campanha vale tudo: inclusive relativizar os riscos da gravidez na adolescência. Durante algumas páginas, o documento explica que, apesar da gestação nessa época da vida ser frequentemente relacionada como fator de alto risco de morte, "existem inconsistências", "trazendo a discussão sobre a relatividade deste".

Também diz que "evidências mais recentes" apontam que a gestação em mulheres jovens não é causa automática de risco à vida, devendo cada caso ser analisado individualmente.

Enquanto isso, uma menina de 11 anos engravida de um estupro pela segunda vez em pouco mais de um ano e é obrigada a levar as gestações a termo em Teresina. Outra, também de 11 anos, é coagida por uma juíza a não realizar o aborto garantido por lei em Santa Catarina. Uma terceira, aos dez anos, teve que entrar em um hospital no porta-malas de um carro em Pernambuco, pois religiosos faziam protestos na porta para que ela não interrompesse a gestação fruto de estupro. Essa cartilha é mais uma prova de que, para esse governo, a vida vale apenas quando está dentro do útero. Do lado de fora, a vida dessas crianças não importa tanto assim.