Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Carta aberta a Déa Lucia, mãe de Paulo Gustavo
Déa Lúcia,
Desculpe dirigir a você uma carta sobre seu filho. Sei que é muita intimidade mas, veja, este é um hábito que tenho quando o assunto me toca muito. É provável que você nem a leia mas, caso isso aconteça, espero que te traga algum conforto.
Nem sempre - minha sábia psicanalista prefere dizer que nunca - os filhos vivem da maneira que projetamos. Sonhamos, planejamos uma vida para eles que nunca acontecerá - porque o sonho é nosso, não deles. Sobre a morte, que nem sequer ousamos pensar, também não temos controle. Mas, aceitá-la, como aprender uma coisa dessas?
Não sei o que é perder um filho. Nem me atrevo a imaginar. Uma coisa que sei: filhos nos refletem. O que, no seu caso, diz tanto que nem consigo encontrar um adjetivo que dê conta do recado. Então, vou apenas agradecer pelo presente dado a todos nós.
Seu filho, Paulo Gustavo, foi um dos brasileiros mais legais de sua geração. Foi legal porque fez a gente rir na frente do espelho, como fazem os humoristas geniais. (Rir na frente do espelho é rir do que somos, não há melhor terapia do que essa.)
Foi legal porque deu dinheiro para quem precisa mais. E foi bastante dinheiro: R$ 1,5 milhão, segundo o padre Julio Lancelotti, que atende a população de moradores de rua do centro de São Paulo. Foi legal porque deu espaço para que se falasse de racismo. Durante um mês emprestou suas redes sociais para que a filósofa Djamila Ribeiro falasse sobre relações raciais no país. Você, com certeza, sabe de milhões de outras atitudes legais dele que sequer imaginamos.
Mas, na minha visão, a coisa mais legal que ele fez foi ter criado uma mãe possível para filhos gays. O que quero dizer com isso? Dona Hermínia, que reflete você e todas as mães do país, ama filhos gays, os aceita. Isso é uma mãe possível, aquela que coloca o filho acima, e não abaixo, da sua identidade sexual ou de gênero.
Encontrei o seguinte depoimento dele ao jornal O Globo em março de 2019. "Com a minha mãe foi tudo muito natural. Eu estava indo do quarto para a cozinha quando ela me perguntou: 'Paulo Gustavo, você é viado?'. Foi assim, indo comprar pão. Eu respondi: 'Sou, tem algum problema?'. Ela soltou um palavrão e completou: 'Está tudo certo, só tenho medo de você ser maltratado na rua. Em casa, você pode ser o que quiser porque eu vou te amar do mesmo jeito. Estamos fechados e vamos juntos' ".
Você, em entrevista ao youtuber Murilo Ribeiro, poucos meses depois, disse sobre Dona Hermínia e sua própria condição de mãe de Paulo Gustavo: "Fora que existe uma questão maior, que é aquela mãe de gay. Se você não abraçar seu filho, você joga ele no mundo e o mundo é mau. Não importa se ele é gay. O que importa é a ética".
Seu filho deu à luz uma mãe que aceitou o filho gay. E, talvez por ser engraçada, desbocada, guerreirona e inteligente, tenha sido aceita pelos brasileiros.
Mais uma vez, me perdoe se minha opinião possa parecer redutora - não é minha intenção reduzir a existência dele a uma questão, a da homossexualidade. Mas penso que nada é reduzido no bem que ele fez ao país ao mostrar que uma sociedade pode ser mais justa e mais cuidadosa com filhos, inclusive filhos gays. Para mim, esse é o sonho, enfim, de um Brasil possível. Um sonho para acalentarmos durante a falta que seu filho nos fará.
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