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"Não sabia": argumento da ignorância não pode perpetuar fala preconceituosa

Linguagem é viva e reflete os nossos valores - iStock
Linguagem é viva e reflete os nossos valores Imagem: iStock

Colunista de Universa

15/05/2021 04h00

De vez em quando, me bate aquela sensação de que passei a vida errando. Não é sempre - se fosse, eu não me levantaria da cama - mas acontece. Com você é igual? Por exemplo: quando coloco uma garrafa pet no lixo reciclável e me lembro das tantas que foram para o lixo comum ao longo de décadas. Quando percebo que estou dando conselhos às pessoas que apenas querem que eu as escute. Quando me pego fazendo várias coisas ao mesmo tempo na tentativa de ganhar tempo. E é claro que, nessa tentativa, eu não ganho nada. Do que adianta ganhar tempo mal vivido?

Ontem, foi um dia em que tive essa sensação incômoda. Estava conversando com meu filho mais velho sobre palavras que usamos, no dia a dia, contendo maldades absurdas. Na maior parte das vezes, não nos damos conta do significado delas, é linguagem herdada dos antepassados. Quantas vezes escrevi a palavra "denegrir" para definir o ato de difamar alguém? Centenas? "Denegrir" associa a cor negra a algo ruim. Da mesma maneira que o branco é associado a algo puro e bom. "Inveja branca": expressão que tanto empreguei com amigas, com o significado de um sentimento positivo. É branco, tá? Não é inveja do mal. "Criado-mudo": termo muito besta para nomear uma mesinha de cabeceira. Um amigo, da minha geração, defende que a expressão não tem conotação racista na origem - seria a tradução do inglês dumbwaiter (criado idiota), um elevador doméstico ou uma mesinha utilizados para o apoio de louça. Mas, mesmo considerando que nem toda a criadagem inglesa era escrava ou negra, o termo é péssimo e ofensivo.

Expressões racistas vêm sendo combatidas por coletivos de militância antirracista e por uma geração de jovens que, cumprindo seu papel de jovens, critica o modelo de vida dos pais. Nesse espaço de Universa, já comentei o quanto me irrita a soberba de alguns filhos ao tentar educar seus pais. Mas, apesar dos exageros na missão de nos realfabetizar, reconheço que a causa é nobre e boa para todos.

São eles que têm chamado a nossa atenção para a linguagem que perpetua preconceitos e que enaltece privilégios. Embora dê um certo trabalho - afinal, estamos reaprendendo a falar -, não seria horrível continuar falando maldades sem perceber? Bem, sei que tem gente que acredita que a intenção ao falar, mais do que as palavras em si, é que machuca. Até concordo que exista diferença entre intenções. Mas a partir do momento em que você não pode se valer do argumento da ignorância - "ah, eu não sabia" -, como pode defender o uso de expressões preconceituosas?

A língua é viva, dizem os linguistas. Apesar de a língua formal nos servir como guia e esteio, na língua falada não existe certo ou errado. Nós escolhemos o que falar e como falar. Ela reflete o que pensamos, nossos valores, o que aceitamos como legado dos antepassados e o que descartamos.

O trabalho de reaprender a língua é, como todo aprendizado, um exercício crítico. Ao se abrir para aprender, você questiona seus conhecimentos e esse questionamento se estende para outros campos. Impossível, por exemplo, você deixar de usar linguagem racista sem deixar de usar linguagem ofensiva a outros grupos. Para mim, essa é a beleza da luta pela defesa dos direitos humanos, das minorias, dos que não se encaixam no modelo que nossa sociedade idealizou. Quem abre os olhos para a defesa de um grupo de seres humanos, não os fecha para os outros. Não consigo imaginar uma feminista sendo racista, por exemplo. Ou uma militante racista sendo homofóbica. (Claro que tudo pode acontecer, porque somos seres humanos e contraditórios, mas...) Quem consegue sentir a dor de um ser humano, consegue sentir a de outro.

Aliás, foi essa exatamente a ideia que meu filho defendeu na nossa conversa. Falávamos, então, do termo "João-sem-braço" e o quanto ele é ofensivo para pessoas com deficiência. Já ouvi pessoas legais, de quem gosto muito, empregar essa expressão: "Ele deu uma de João-sem-braço..." Tenho certeza de que essas pessoas estavam apenas buscando um adjetivo neutro para falar de uma situação, um adjetivo que veio de uma memória antiga, ouvida em casa, na infância, na escola. Mas esse não é um adjetivo neutro. Assim como "Aleijado", "Perneta", "Mongol", "Mãozinha", "João-sem-braço" foca na deficiência, na diferença, e não na pessoa. Aliás, ao pesquisar a origem da expressão, descubro uma história. Dar uma de João-sem-braço é dar uma de sonso, no entendimento atual. Isso vem da época em que malandros de Portugal, disfarçando-se de feridos de guerra, amarravam seu braço para pedir dinheiro nas ruas. Talvez a pessoa que criou essa metáfora não tenha tido uma intenção ofensiva. Mas imagine uma pessoa sem braço ouvindo essa expressão como sinônimo de sonso, de malandro, de preguiçoso. Dói.

E, como me disse meu filho, quem consegue sentir a dor de um, consegue sentir a de outro. Não precisamos dessas palavras e expressões. Elas machucam.

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