Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
E quando você ainda não fez 60 anos, mas te indicam a fila preferencial?
Estou no supermercado perto de casa onde, dia sim, dia não, me apresento com uma sacola retornável no ombro. O intuito é sempre o de comprar o mínimo necessário para carregar pouco peso. Quase nunca dá certo.
Bem, neste dia a sacola está pesadinha e vou para meu lugar na fila, atrás de algumas pessoas: uma minúscula família — pai e filha de colo —, um homem barbudo com duas garrafas de Coca-Cola - grisalho mas nem tanto - uma mulher que situo entre 15 a 25 anos — de shortinho, sacola de pano, franja curta, chinelo de dedo. Fila pequena para o horário, pouco mais de meio-dia. Me acomodo no meu lugar, tiro o celular da bolsa para matar o tempo (eita dependência essa!) e a moça de shortinho grita:
- A senhora pode passar na frente da gente.
Eu levei um sustinho e demorei um pouco para entender. Passei os olhos em volta para sacar o contexto. Enquanto o pai e o barbudo me encaravam com certa desconfiança, a moça dava um sorriso de olhos e confirmava que, sim, era ela quem me proporcionava aquela gentileza: ceder o lugar na fila (dela e dos outros) para os meus cabelos brancos, preferenciais. Mais brancos que a criança no colo do pai, mais brancos que o grisalho do barbudo, na opinião dela.
Quem tem cabelos brancos, principalmente mulheres com cabelos brancos, já passou pela experiência. Mesmo não tendo 60 anos - a idade da velhice nas normas cidadãs -, são tratadas como preferenciais. "Senta aqui", diz o garoto educado, ao lado do banco de ônibus. "Passa na minha frente, eu espero", diz a mulher que sempre parece ser mais velha do que eu - mas que pinta o cabelo, o que deixei de fazer há poucos anos. Dá vontade de furar a fila, descansar no banco preferencial? Confesso que às vezes me passa pela cabeça. Especialmente se estou no transporte público, cansada e pressionada por corpos que não conheço. Mas nunca passei na frente de ninguém, ainda espero minha vez.
Por isso, nesse dia, respondo à moça do supermercado:
- Ah, obrigada. Mas ainda não fiz 60.
Não falei com raiva, embora admita que lá dentro do meu coração cheio de preconceitos não superados, eu tenha me ofendido um pouco. Achei que tinha falado "de boa". Mas a garota ficou tão desconcertada que disparou a dizer bobagens para se recuperar da gafe:
Mil desculpas, nossa, eu pensei...
- Não precisa se desculpar, tá tudo bem. Ser velho não é... (me engasguei um pouco, não sabia como completar, eu também sem traquejo nesse tipo de conversa)... feio.
- É que o cabelo branco, sabe... E você está de máscara, então...
Os colegas de fila e o caixa pararam para ouvir o diálogo. Estavam adorando, quem é que não gosta de levar para casa algo extraordinário para contar? "Ah, você não sabe, estava no supermercado e uma menina chamou uma mulher de velha e..." Nós duas, constrangidas, sem saber como nos livrarmos do embaraço, éramos a piada pronta daquele dia.
- Não tem problema -, eu insisto. Fica tranquila.
Ela olha para baixo, para o lado, torce as mãos.
A fim de não morrer de vergonha alheia, volto os olhos para o celular. Mas, aí, ouço a voz dela de novo. Entendo: ela não pode deixar de encerrar aquela conversa de um jeito digno. Ela é uma moca legal e é dessa maneira que quer ser percebida pelo mundo. Perfeitamente compreensível.
- Minha mãe também deixou de pintar o cabelo - ela consegue dizer, por fim.
Enquanto saboreio essas palavras de reparação, o diabinho e o anjinho disputam a vez de responder à moça. O diabinho sussurra:
- Ah, é, e você acha que ela parece mais velha do que é? - Mas, claro, eu também sou uma pessoa digna e respondo com a voz do anjinho:
- Pois é, tá na moda, né?
Na rua, para o azar dela, nos encontramos de novo, moramos próximas. Ela foge de mim, percebo, e fico penalizada. Não era para tanto.
Lembra que disse que eu sempre espero minha vez? Daqui a seis meses, não vou precisar esperar mais - se não houver mudança na lei que rege as preferencialidades. Em agosto, completo 60 anos. Será que em vez de posar de super ética eu não poderia, simplesmente, ter furado a fila, aceitado a gentileza da moça e a poupado de um constrangimento?
Você, leitor, se me conhece desse espaço, sabe que constantemente chamo a atenção para o idadismo, o preconceito contra adultos mais velhos. Já escrevi também que os cabelos brancos não devem ser uma obrigação, mas se forem uma decisão autônoma das pessoas, devem ser comemorados como um sinal de liberdade. Aí, me flagro em um comportamento mesquinho, guardando o semestre que me separa oficialmente da velhice como se ele fosse um tesouro. Dia em que me senti o próprio Golum, de "O Senhor dos Anéis", prisioneiro da posse do anel (no meu caso, prisioneira da minha juventude). Ai, ai, pensa que é fácil lidar com o idadismo? Assim como o racismo e o machismo, ele também é estrutural.
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