Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como na série 'Mentiras', por que é tão difícil acreditar nas vítimas?
Um dia desses, um amigo me pediu um texto sobre justiça e injustiça. Nossa, que desespero, não me senti à altura. Você se sentiria? Quer coisa mais difícil do que julgar o que é certo ou errado?
Por outro lado, sem pacto coletivo sobre o que é justo, não sobreviveríamos. Não levantaríamos, todas as manhãs, para nos comportarmos de acordo com as regras, com as normas, com o bom senso, se não acreditássemos, lá no fundo, que os erros são castigados e os acertos, reconhecidos.
Então, escrevi um texto sobre Nanã, a orixá feminina que, segundo a mitologia do candomblé, deu origem aos seres humanos e, com isso, ganhou o direito de enviar os bons ao céu e os ruins ao inferno. Me perdoem os estudiosos da matéria, reconheço que é uma interpretação simplista do papel dessa divindade. Mas uso o exemplo apenas para falar das delícias e das dores de estar no papel de Nanã, a juíza.
Aí, vem a vida real, fora da mitologia e das teorias. Nas mídias sociais, uma pessoa acusa outra de ter tido um comportamento homofóbico porque foi repreendida ao beijar o namorado em um estabelecimento comercial. Um grupo ficou a favor do acusador —a vítima da homofobia. Outro grupo, a favor do acusado, o dono do estabelecimento comercial. Como ninguém processou ninguém, o debate se deu apenas nas redes sociais e nas fofocas. E no território do diz-que-diz-que, todo mundo é juiz.
"Ah, mas será que a pessoa que acusou não fez por merecer? Será que ele realmente não estava exagerando e tendo um comportamento inadequado ao beijar o namorado em um restaurante familiar?", dizem alguns. "Ah, mas o dono do estabelecimento comercial nunca repreendeu um casal heterossexual, por que justamente na demonstração do carinho entre gays ele teria que implicar?", dizem outros.
Sim, a discriminação pode ser considerada crime. Lembrando que, em 2019, o Supremo Tribunal Federal declarou equivalentes atos homofóbicos e transfóbicos a crimes de racismo.
Mas, depois de algumas semanas de pressão, o acusador declara que quer paz. Não aguenta mais o confronto com o acusado. Não aguenta a desconfiança da comunidade da qual faz parte. Prefere esquecer o que aconteceu porque, no processo de julgamento popular, ele foi transferido do papel de vítima para o papel de culpado.
No seriado espanhol "Mentiras", que acabo de ver na Netflix, o deslocamento da culpa está desenhado com muita nitidez. Apesar de o roteiro capengar de vez em quando, a produção mostra de maneira muito emocionante a trajetória de desconfiança em torno do testemunho da vítima, uma professora violentada em um encontro com um médico. Como se dá essa trajetória de desconfiança?
1. A professora se encontra com o médico de livre e espontânea vontade.
2. A professora bebe bastante durante o jantar.
3. A professora tem um histórico de instabilidade psicológica.
4. O médico é respeitado na comunidade, afinal é médico e cria sozinho seu filho.
5. O testemunho da vítima é insuficiente.
Provas muito mais concretas são necessárias para não manchar a reputação do acusado de maneira leviana.
Culpar a vítima é uma coisa comum. E a pior forma de culpá-la é pela omissão. Defender a vítima nunca é fácil, a verdade nunca é cristalina como gostaríamos. Mas, como Nanã, muitas vezes temos que ter a responsabilidade de assumir uma posição. Neutralidade não traz justiça.
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