Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Três amigas esquecidas se visitam na Páscoa
Duas amigas e eu decidimos passar a Páscoa juntas. Temos entre 59 e 70 anos e acabamos de tomar café. Uma delas, a de 63, vai lavar a louça. A de 70, anfitriã de nosso encontro —está dando uma geral na casa. Eu, mais preguiçosa, estou aqui observando a movimentação.
- 70, essa bucha que você usa é diferente. É boa? -- diz 63-- mostrando uma esponja prateada, uma coisa metálica, futurista, meio "Mad Max".
- Ah, eu gosto. Não arranha as panelas.
Esse é o tipo de conversa que temos hoje. No café, falamos da forte presença de jornalistas negros na TV Globo e lembramos que, por décadas, era apenas a Glória Maria representando mais de metade da nossa população na TV.
Comentamos que o mesmo movimento aconteceu com as mulheres, o quanto demorou para que elas pudessem ser tão valorizadas quanto os colegas masculinos. É um bom bate-papo de jornalistas que estiveram em redações de jornais, revistas e emissoras de TV por muito tempo e veem as mudanças acontecendo com uma razoável perspectiva, digamos, histórica.
Na hora de lavar louça, o assunto muda radicalmente e passamos a falar de produtos de limpeza. Isso não teria acontecido antes. Nossa geração, branca, e com terceiro grau, não cuidava da casa, não sabia de panelas e como conservá-las. Agora, fazemos isso cotidianamente. E assuntos domésticos entram na pauta, temperados com pitadas de humor que só a (leve) falta de memória pode trazer.
- Engraçado -- diz, 63 --, a gente falou disso ontem? [Da bucha.]
- Não, acho que não -- diz 70 - Por quê?
- Me deu um dejà vu agora. Não, não, tenho certeza de que já falamos disso antes. Lembro até da sua resposta.
- Não foi no ano passado, quando você esteve aqui? --, a de 70 pergunta.
Caímos na risada de novo. Sim, foi no ano passado. A amiga de 70 tem a melhor memória das três.
Olho 63 de costas, debruçada sobre a pia, e percebo que ela emagreceu. Do ano passado para cá, eu engordei tanto que o jeito foi comprar dois moletons que não apertam a barriga e, por isso, me dão uma certa ilusão de que está tudo certo. Com reuniões virtuais, só preciso me preocupar com a aparência da parte de cima.
- 63, você está fazendo dieta? Emagreceu bastante -- pergunto.
- Ah, você notou? Perdi 6 quilos -- ela responde, orgulhosa.
Alívio. Na hora em que fiz a pergunta, bateu aquele medinho de que 63 estivesse doente. Tipo de coisa que, nessa idade, pode acontecer e exige algum cuidado da nossa parte.
- Claro que notei, você está ótima. O que você fez? Me conta tudo.
- Estou tomando umas injeções...
- Aquela da diabetes? É a segunda vez que ouço falar dela nesta semana. Aquela amiga, a 62, lembra dela?, também tomou e emagreceu muuuuito.
- Que injeção? - pergunta 70.
- Uma que tira a gula -- respondo.
- Você tem aí, pode me dar? -- diz 70 à 63.
- Não, sua louca, tem que ir ao médico -- digo.
- Mas como chama a injeção? -- pergunta 70.
- Ah, não sei do nome. 63 está tomando, deve saber.
- Não lembro também - diz 63 . Peraí, vou procurar na mala.
Vários minutos depois, 63 volta do quarto e nos encontra na sala comentando um seriado turco que deixou 70 viciada. Como minha amiga se esqueceu do nome da série, para compensar me conta todo o enredo, com muitos detalhes sangrentos. Legal, né? Assim, nem preciso assistir. Boa, 70!
- Gente, não achei a injeção. Acho que esqueci em São Paulo -- diz 63, bastante chateada.
- Que injeção? -- pergunto.
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