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'Medo de se comportar mal': Por que nós, mulheres, atacamos umas às outras?

Julia Roberts vive Martha Mitchell, mulher do ex-procurador geral do presidente Richard Nixon, no seriado "Gaslit" - Divulgação
Julia Roberts vive Martha Mitchell, mulher do ex-procurador geral do presidente Richard Nixon, no seriado 'Gaslit' Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

23/05/2022 04h00

Primeiro, você pega uma pessoa. De preferência uma mulher, alguém que foi educado para se sentir ligeiramente inferior, alguém com muitos complexos, entre eles o de ser uma farsante. Mexe bastante essa mulher com 1 litro de vodca (ela gosta de beber) e uma cartela de ansiolíticos (ela é muito ansiosa, impulsiva e problemática). Deixe marinando.

Adicione medo em grande dose. Sempre um excelente tempero, o medo das outras mulheres —"Graças a Deus, a louca é ela!"—é ótimo na hora de flambar sua receita. Depois disso, não tem erro. Deixe assar bastante tempo em temperatura muito alta, para que essa pessoa nunca mais pense que tem razão, que ela é melhor do que os outros.

Por que esse prato que acabei de descrever nunca daria certo sem esse ingrediente cruel, poderoso, altamente inflamável que é o medo das mulheres de se comportarem mal, de agirem de maneira desequilibrada?

Há alguns dias, me desentendi com uma colega, uma mulher com quem eu deveria unir forças. Estávamos nos bicando havia algum tempo em um terreno cheio de arestas. Até que, em determinado momento, perdi a paciência, me senti insultada e explodi. Ou foi ela que se sentiu insultada e explodiu primeiro? Tanto faz.

Desliguei o celular, depois da troca de palavras duras, e fiquei com vontade de chorar. Imagino que o mesmo tenha acontecido com ela. Juro, me senti mal por nós duas.

Eu a magoei. Ela me magoou. Eu a ataquei por entender que ela dificultava meu trabalho. Não disse, mas quis dizer: "para de ser tão controladora e de criar problema!" Ela, por sua vez, me disse algo bem parecido: "por que você está criando tanta confusão?" O que resumiria a nossa conversa: ambas estávamos dizendo que a outra tinha se comportado mal. Não eu, mas "a outra" era a difícil, a encrenqueira. Foi um jogo doloroso de espelhos.

Nós, mulheres, atacamos as outras nas fraquezas que nos refletem. Bicamos as outras nas feridas que saíram de nós, aquelas que conhecemos tão bem e ainda não cicatrizamos.

Por que fazemos isso?

Nesse mundo duro que nos esculpiu como rochas pontudas de vento, ouriçamos nossas asas de passarinhas para machucar as outras.

Acabo de ver mais um episódio de "Gaslit", o seriado com Julia Roberts que está disponível no Prime Video. É a história de Martha Mitchell, mulher do ex-procurador geral do presidente Richard Nixon, dos Estados Unidos, durante o desastroso episódio de Watergate.

Na minha opinião, o seriado é genial. Como insinua o título (em inglês, ao distorcer e duvidar das palavras de uma mulher, um homem abusador está praticando gaslight), o seriado faz uma leitura feminista contemporânea da história de Martha e de seu marido John (Sean Penn, inacreditável no papel do político).

Ela teria sido responsável por levantar as primeiras suspeitas sobre a invasão dos escritórios dos democratas pelos republicanos ligados a Richard Nixon.

Enquanto Martha falava para revistas femininas, tudo certo, era apenas uma socialite meio falastrona. Quando começou a dar entrevistas para a imprensa "séria", sofreu a rejeição dos pares, inclusive do marido, que a descartou sem pensar duas vezes. Antes de morrer, aos 58 anos, Martha recebeu todos os adjetivos que são costumeiros para desqualificar uma mulher: bêbada, desajustada, irresponsável.

Martha foi marinada e assada até morrer pelos políticos de Washington. Foi jogada aos leões, que lamberam os beiços sem nenhuma culpa. Foi picada pelas antigas amigas. Saiu do posto de figura admirada para o de uma feia criatura que jamais deveria inspirar outras mulheres, por mais inteligente e autêntica que tivesse sido.

Em uma dimensão muito mais impactante, Martha foi a mulher encrenqueira que todas somos alguma vez na vida. E da qual todas nós morremos de medo.

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