Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Histórias de dor e rejeição são o retrato de pessoas transgênero
No mês do Orgulho LGBTQIA+, abro o espaço desta coluna para publicar três textos que integram o livro "Cartas do Casarão, 9 Histórias de Pessoas Trans", que escrevi neste ano e conta com ilustrações de MariaB. O livro nasceu de um projeto de atividade voluntária que fiz durante a pandemia no Centro de Cidadania LGBTI Claudia Wonder, equipamento da Prefeitura de São Paulo que atende a população LGBTQIA+ da zona oeste da cidade. A pedido do coordenador do Centro, Rogério de Oliveira, passei a colher depoimentos dos frequentadores do local. Por sugestão de Rogério e com o aval dos entrevistados, esses depoimentos foram ditados no formato de cartas.
O apanhado de histórias que escrevi revela um retrato sofrido, injusto, às vezes dilacerante, da vida de pessoas transgênero adultas vivendo em situação de vulnerabilidade em São Paulo.
Todos os meus entrevistados foram expulsos de casa ou viveram em conflito com a família. Todos largaram a escola antes do ensino médio. Muitos sofreram abusos terríveis na infância, adolescência e idade adulta.
Por outro lado, as histórias dessas pessoas são contos de fé nos recomeços. São também a marca de um tempo que, talvez, estejamos superando. Cada vez mais vejo pais que acolhem seus filhos transgênero e os apoiam em sua caminhada, ao contrário do que acontecia em gerações anteriores. Esses filhos, espero e acredito, não precisarão contar histórias de rejeição e de dor como essas descritas no livro.
Estreio essa pequena série com a carta de Allian, um elegante homem trans de 55 anos, ex-catador de resíduos que, hoje se orgulha de ser um aluno com notas altas no ensino fundamental.
Carta para o universo,
não existe coincidência. Não sei você, mas eu acredito nisso, nada acontece por acaso. Perdi o emprego de segurança na pandemia, precisei morar em um abrigo para mulheres --eu, sendo homem, de alma, desde menino-- e, depois, em um quartinho no bairro do Glicério, em São Paulo. Quarto sujo, com baratas, ratos, sem banheiro, tão pequeno que nem cabia uma cama direito. Eu estava muito desanimado, nossa, e fiz um pedido para o universo, para a espiritualidade que me guarda. Pedi uma luz.
Numa noite, tive um sonho com um dos meus guardiões do candomblé, religião africana. Foi com o Zé Pelintra, que considero meu pai, e ele me disse:
"Filho, eu vou abrir as porteiras para você estudar e crescer".
Eu tenho 55 anos, mal terminei a quarta série. Fui carroceiro por muito tempo e, depois, segurança. "O que eu, nessa idade, meu pai, posso conseguir?"
"Nunca é tarde para subir na vida", respondeu ele.
"Estou velho", eu disse.
"Não, meu filho, você tem muito caminho pela frente."
De manhã, acordei alegre, acendi a vela para o guardião. Deixei o cigarrinho e a bebidinha que ele gosta. Agradeci e perguntei: "E agora? Para onde você indica que eu vá se quero estudar?"
Alguma coisa dizia que eu deveria ir para uma casa de convivência, no centro da cidade, o Sefras [Serviço Franciscano De Solidariedade], um espaço para pessoas em situação vulnerável. Eu gostava muito de uma das coordenadoras desse espaço, a Adriana, e perguntei se ela podia me ajudar, se tinha algum jeito de eu voltar para a escola. Ela me indicou para o Transcidadania [programa da Prefeitura de São Paulo que promove a reinserção social de travestis, mulheres e homens trans]. Não sou de puxar saco, não sou desse tipo, pelo contrário. Eu era conhecido por ser um cara briguento, desconfiado. Mas esse programa me transformou. Sabe por quê? Com ele, sinto que posso falar de igual para igual com qualquer um.
Pela primeira vez na vida, eu me sinto acolhido. Sabe o que é isso? É como se sentir parte de uma família. Eu não fazia parte de família desde pequeno, desde que me entendo por gente, desde que me lembro do meu padrasto me espancando.
Aos 16 anos de idade, eu e minha irmã gêmea saímos de casa, fugimos. Eu consegui um emprego de office boy, ela virou vendedora de loja. Moramos juntos algum tempo no apartamento de umas amigas. Mais tarde, quando nos distanciamos, ela virou garota de programa. Fiquei cinco anos trabalhando de office boy. Quando perdi o emprego, na mesma época perdi minha irmã, a gente se separou. Uma dor que carrego é este relacionamento ruim que tenho com ela hoje.
Eram os anos 1990. Fui para a rua ganhar a vida com reciclagem. Arrumei uma carroça, instalei lanterna, toca fita e TV com bateria. Muito chique, era a minha casa. Eu levava comigo um colchão de dormir e meus cachorros, um doberman e um pastor alemão que ganhei de um colega. Esses cachorros já morreram de velhice, mas foram meus filhos. Eu cuidava deles, eles cuidavam de mim.
Sempre fui magrinho, mas nunca tive medo. Claro que na rua não se brinca, eu carregava 18 facas na minha carroça. O principal é que ninguém mexia comigo porque sabiam que eu praticava artes marciais. Nas artes marciais, o que importa é o equilíbrio, não a força bruta. Por isso, apesar de magrinho, eu conseguia levar minha carroça pela cidade. E, olha, carroça dá dinheiro. Foi com o dinheiro dela que paguei meu curso de segurança.
Peraí, me perdi. Estava falando de quando eu fui pedir ajuda para o universo e para o guardião. A Adriana também me disse para eu buscar o Centro de Cidadania LGBTI Claudia Wonder [gerido pelo Casarão Brasil], na Lapa, eles podiam me ajudar.
Me lembro que, andando na rua, em direção do lugar, passei na frente de uma loja de artigos religiosos. Acredita que o Zé Pelintra estava sentado na calçada me apontando a direção do meu destino? Eu repito: não existe coincidência.
Dois meses depois, fui aceito no programa. Me inscrevi com meu nome de verdade: Allian, que consegui mudar na certidão de nascimento faz pouco tempo. Não sou mais Simone Regina, aliás nunca foi. Fui homem nas minhas vidas passadas e hoje sou Allian, estudante da oitava série de uma escola no Cambuci, onde, pela primeira vez, eu recebo nota 10 dos professores. No Claudia Wonder, faço curso de inglês, de empreendedorismo, de educação financeira, de teatro. Faço qualquer oficina que aparece porque eu quero continuar aprendendo. Logo, vou me formar no ensino fundamental. Aos 55 anos.
Na minha vida de carroceiro, nunca me deixei dominar pela violência das ruas, pela maldade das pessoas. Aprendi que a gente tem que continuar lutando, não se pode perder a fé. Comecei essa carta falando do lugar horrível onde eu morava. Hoje, agradeço ao universo e ao meu guardião porque moro em um lugar digno, com quarto, cozinha e banheiro. Minha casa é uma gracinha, decorada com os móveis que pego na rua. Tem hábitos que a gente não abandona [risadas]. Ah, também tenho uma gatinha que mora comigo.
Não sou mais briguento, tenho orgulho de mim mesmo. Eu notei que o estudo melhorou a mim como pessoa, por isso quero continuar estudando, evoluindo. Quem sabe, com paz, eu também possa ajudar outras pessoas?
Allian Lian Costa, homem trans, estudante, 55 anos, paulista
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