Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A história do grande amor de Roberta, mulher trans que foi casada 3 vezes
Como prometido, nesse mês do Orgulho LGBTQIA+ trago três textos retirados do livro "Cartas do Casarão, 9 Histórias de Pessoas Trans", que escrevi em parceria com o Centro de Cidadania LGBTI Claudia Wonder. O primeiro texto, publicado na semana passada, foi do único homem trans do livro, Alian Lian, que, aos 55 anos, depois de passar a vida adulta praticamente nas ruas, estava de volta à escola.
Nesse segundo depoimento, quem conta sua história é uma jovem mulher trans. Roberta usa o cabelo repartido em maria-chiquinhas brincalhonas. É inquieta e alegre e seu olhar, ela me diz, é um ímã de bofes. Não dá para imaginar o que ela vai dizer a seguir.
Carta para meu querido Jian,
eu já te disse: um dia, vou me casar com você. E vai ser para sempre, porque é desse jeito que acredito no amor. Você é complicado, mas me completa, sua loucura me completa. Estar com você é ter carinho e dar risada. Andar de mãos dadas na rua, não sentir que alguém tem vergonha por estar ao meu lado.
Mas tá difícil, hein? Quando te conheci, você tinha acabado de sair da prisão. Já era do crime, sempre rebelde, né? A gente logo se apaixonou, foi morar junto, eu conheci sua família e sua mãe, minha sogrinha que faz uma comida maravilhosa. Aliás, vou almoçar com ela amanhã.
Morar com você foi um tempo bom demais, apesar das brigas porque você não parava quieto em casa, precisava aprontar com os amigos. Mas nem bem os móveis da nossa casinha chegaram e você estava preso, cumprindo pena porque tentou roubar um celular. Doutra vez, você pulou o muro, fugiu da cadeia e veio me visitar. Bem que podia ficar quieto em casa, mas arrumou de vender droga no centro e acabou preso de novo.
Foi uma devassa na minha vida. Perdi o chão, você sabe. Eu não gosto de julgar, eu também já me meti com drogas, mas você é muito moleque mesmo! Não te abandonei, fico indo te visitar, ditando esta carta para você... Mas olha, toma cuidado. Dê valor ao que tem, depois que perde, não adianta mais.
Você está se perdendo. E, se perdendo, você me perde.
Gosto de ser livre, mas não gosto de ficar sozinha. Depois da sua prisão, passei a viver em uma pensão de mulheres. Sou a única trans, mas sou tratada igual, sem problemas.
As pessoas de Libra, como eu, são regidas por Vênus, a deusa do amor. Vai ver que é por isso que eu seduzo os bofes com meu olhar 43 [risadas]. Mas, sem brincadeira, eu acredito que a gente não escolhe gostar. Se escolhesse, tinha arrumado um velho rico para cuidar de mim. Quer saber a verdade? Parece que eu chamo os homens como você, de vida louca, sem juízo. Eles vêm atrás de mim como um rato atrás de um pedacinho de queijo.
Em 2013, me casei pela primeira vez. O Juliano foi uma das melhores pessoas que passaram na minha vida. Trabalhador, me dava presentes bons, me levava para passear, sustentava a casa que a gente tinha em Sete Lagoas [Minas Gerais], onde eu nasci. Mas ele morreu logo, de overdose de cocaína.
Com o Romário, o casamento durou pouco, ele era muito molecão. Enquanto eu trabalhava no salão, ele ficava na rua, conversando e fumando maconha. Depois, veio o José, que era muito trabalhador. Vivemos juntos dois anos, mas o casamento era conturbado porque, além de usar drogas, ele era alcoólatra. Homem bêbado é chato demais.
Então, foram três casamentos. Não posso reclamar. Com o primeiro, consegui parar de me prostituir. Fiz um curso de cabeleireira, minha profissão por muito tempo, até a pandemia, quando perdi o emprego e passei a viver de bicos e de cestas básicas de programas de assistência social.
A prostituição de mulheres trans e travestis é aquele velha história: a menina vem para a cidade grande com muita promessa de cafetina e acaba na escravidão. No meu caso, quando saí do interior de Minas Gerais e fui para Campinas, em São Paulo, aos 18 anos, eu estava começando a transição. Antes de me casar, morei em várias casas de cafetina. Cada casa tem o seu sistema, suas regras. Algumas são boas, outras, bem ruins. As boas dão uma alimentação melhor, um dia de folga para a menina poder descansar. As ruins têm seus capangas para bater na gente. Essas cafetinas inventam contas que ninguém consegue pagar, cobram por qualquer coisa, multam as bichas por deixar um copo sujo na pia, por discutir com uma colega...
Mas elas ganham dinheiro mesmo com a estética, silicone, megahair, cirurgia plástica. Se elas financiam um silicone nos seios que custa R$ 7 mil, vão te cobrar R$ 14 mil. Para pagar tudo isso e se libertar, você tem que ter uma meta, um número de programas por dia para bancar as despesas, o táxi, a comida, a diária na casa da cafetina, as roupas, a estética. Eu sempre fui muito certinha nesse aspecto, sempre tive uma meta e paguei as contas direitinho. Por isso, quando saí, não deu problema.
Mas não é que eu seja santa. Fui presa em Campinas, roubava clientes, batia neles, quebrava carros. Eu via as bichas fazendo e fazia igual. Estava na brisa de cocaína e tinha muita raiva na época. A prisão foi horrível, fiquei numa prisão de homens por um ano e só sobrevivi porque uma amiga, que já faleceu, me protegeu muito lá dentro.
Quando penso em você, Jian, tenho esperança de te ajudar com meus conselhos, porque já estive no mal caminho também. Sei que você teve muitos problemas, que viveu largado, como eu vivi. Eu te entendo, não te julgo. Só quero que você saia da prisão e não volte mais para lá.
Quero deixar de ranger os dentes para sorrir.
Roberta Rezende Coelho, 31 anos, recepcionista e cabeleireira
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