Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Aos 81, Ney Matogrosso é dono do rebolado mais subversivo do país
Era 1974, hora de um programa novo na Globo, o "Fantástico". Nossa TV de tubo ficava perto da escada que levava ao segundo andar do sobrado. No sofá bege e marrom de veludo, com vários módulos formando um L, mãe, pai e três dos quatro filhos —um dos meus irmãos jogava bola na rua—, esperavam pelo fim da semana. Estávamos largados, querendo acabar logo com aquela hora de tédio e angústia de noite de domingo, já manchada de segunda-feira.
Sempre tinha um número musical no "Fantástico". Naquele dia, em março de 74, três caras esquisitos estavam no palco. Um deles rebolava com uma espécie de saia havaiana bem abaixo da cintura, que eu, mesmo aos 12 anos de idade, sabia ser bem sexy. Pelo no corpo, muito pelo. Como era possível, se ele cantava como uma mulher e dançava como uma mulher?
E, talvez o mais importante, como é que eles estavam na TV brasileira, em plena ditadura, entrando na casa das famílias sem cerimônia daquela maneira?
Depois de um tempo, minha mãe se levantou em direção à cozinha. Meu pai e meu irmão mais velho foram atrás. Sobramos eu e o caçula, de 4 anos. Estávamos os dois hipnotizados, maravilhados e escandalizados com a banda mais estranha do mundo. Apesar da androginia, das letras cifradas, da ousadia (coisas que até hoje não entendo como não foram censuradas), a banda iria virar um sucesso absolutamente monstruoso e inesperado no país.
Senhoras e senhores, esse foi o primeiro show dos Secos&Molhados que eu e meu irmão assistimos e isso nos marcou para sempre. Tenho certeza que marcou muita gente da nossa geração. O show apresentado pelo "Fantástico" foi gravado em preto e branco. A TV de casa era em preto e branco também. Mas juro que me lembro de tudo em muitas cores. Agora, quando vou buscar o show no YouTube para escrever este texto, não consigo acreditar que as penas do figurino do Ney Matogrosso não fossem vermelhas e amarelas e azuis.
A apresentação dos três músicos, Ney, João Ricardo e Gerson Conrad, também ecoou nos familiares que se retiraram para a cozinha. Pois, a partir dela, meu irmão caçula passou a imitar a dança do Ney Matogrosso com insistência e talento. Era pouco mais do que um bebê. E rebolava lindamente. Foi o aviso para todos: meu pequeno irmão não se encaixava no nosso pequeno mundo sem matizes. O desconforto que as coreografias de "Vira, Vira" e "O Gato Preto" geraram na minha família não foi pequeno. Mas foi tão importante!
Imagino a quantidade de meninos, como o meu irmão, impossibilitados de demonstrar sua expressão de gênero, que foram libertados pelo rebolado e pelo contralto de Ney Matogrosso. Quantas pessoas LGBTQIA+, nos anos 1970, não olharam para a TV e disseram: "Eu não estou sozinho". Só por isso, Ney, com suas franjas, seus olhos amendoados com kajal, sua voz finíssima, sua falta de medo... Só por isso, eu beijaria seus pés.
Quarenta e oito anos depois, compro o ingresso para o show dele em São Paulo como um presente para meu aniversário de 60. Ney, neste dia 1º de agosto —hoje!—, faz 81 anos de idade (eu o acompanho 5 dias depois). Até agora, não sei se ele é ou não um E.T., um ser extraordinário que veio sacudir nossa realidade mesquinha, tacanha, binária dos anos 1970.
Tantos anos após o choque inicial, o cantor continuou nos desafiando. Com quase 80 anos de idade, ele se vestia com um figurino sublime, criado pelo estilista Lino Villaventura, colado ao corpo. Cantava "Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua". Quem viveu nos anos de chumbo sabe que essa letra, de Sergio Sampaio, é um hino a favor da liberdade. Um hino de resistência.
Aos 81 anos, espero reencontrá-lo, mais subversivo do que nunca, desafiando nossas pequenas crenças sobre gênero, idade, o que é certo e errado. Espero vê-lo em infinitas cores.
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