Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Falar sobre histórias de recomeço me dá esperança de sair da crise dos 60
Meu avô tinha 60 anos quando recomeçou.
Fechou a porta de sua casa em uma pequena cidade no interior de São Paulo, tão pequena quanto um caroço de romã. Subiu em uma perua Rural Willys, apertou lá dentro quatro filhos adultos, duas noras e minha avó, uma mulher pequena e gordinha como as avós de antigamente.
Deixaram o interior de São Paulo e rodaram 1 mil quilômetros que, no começo dos anos 60, significava uma aventura extrema. Com sorte, a distância que hoje se faz em dez horas de carro, era percorrida com três dias de estrada e de atoleiro.
Dourados, no Mato Grosso do Sul, era mais uma vila do que uma cidade, com uma artéria de terra servindo de rua principal. Quando chovia, o barro afundava na batata da perna. Com casas de madeira sem pintura, horizonte lisinho, fartura de céu, fumaça de lenha e música caipira nos radinhos, Dourados era a melhor definição de um faroeste caboclo. Estação fervilhante da nova fronteira agrícola desbravada por gente do Brasil todo, especialmente pelos gaúchos.
O nome vinha do rio, bom para pegar dourados. A fama veio da terra vermelha, onde antes habitavam os hoje melancólicos Kaiovás, exilados de seu ambiente há muito tempo (hoje, Kaiovás, Guaranis e Terena vivem em reservas em torno da cidade).
Foi lá que meu avô e minha avó se instalaram, filhos e noras em uma fazenda pequena para a região. Abriram algumas clareiras para as casas da família. Água para puxar do poço, luz de lamparina que deixava o nariz preto, piso de chão batido.
No primeiro ano de fazenda, conta minha mãe, acabou o dinheiro e eles estavam no meio do mato. Longe, longe, longe. Com a ajuda dos filhos, meu avô derrubou árvores e vendeu madeira até sair do buraco.
Quando o conheci (quando registrei a primeira memória dele), meu avô parecia um fazendeiro próspero. Não rico, mas bem o suficiente para ter curral e as vacas Nelore desfilando pelo pasto.
Uma época, soube, ele desanimou. Entrou em depressão. O médico mandou que pegasse a enxada até que passasse a tristeza. Dizem que funcionou.
Décadas depois, minha mãe repetiu o feito. Aos quase 50 anos, também se mudou. De Dourados para o Maranhão com três dos meus irmãos. Era professora de português e, pouco antes de se aposentar, largou tudo e se arriscou na lavoura, no Nordeste, junto com meu pai, dentista. Com um neto já, ela decidiu recomeçar a vida.
Eu fiz 60 anos há pouco e sou de uma geração que acredita que os 60 são os novos 40.
A verdade é que não me sinto com 40 e tem semana em que estou mais para 70. Admito que a dor no joelho, o esquecimento de palavras, o repentino ganho de peso, a dúvida sobre o futuro tardio, tudo isso mexe com a percepção que eu tenho da minha idade.
Às vezes, tenho a sensação paranoica de que não te contam a verdade toda sobre alguns eventos importantes da vida. Fui pega de surpresa quando me tornei mãe. Não fui informada sobre várias coisas boas e mágicas e nem sobre todas as coisas difíceis. Estou sentindo a mesma coisa agora. Ninguém me falou que seria assim. Ao contrário. Minha amiga mais próxima me disse que, aos 60, se libertou dos sentimentos de obrigação. Outras amigas com 60 e poucos parecem ter os 50 de antes.
Nessas horas de insegurança com a idade, quando você percebe que está mais perto do fim do que do começo, quero lembrar dos meus antepassados.
Conversar sobre as histórias do recomeço, tanto da minha mãe quanto do meu avô, me deixam com uma sensação de esperança para sair da crise dos 60.
Não vou pegar em enxada e nem arear panela, mas talvez meu recomeço exija outro tipo de coragem, uma coragem que, só agora, começo a acreditar que eu também tenha.
Tenho consciência de que não vou recomeçar qualquer recomeço. Alguns sonhos e projetos, de fato, já não são viáveis. Faltam-me tempo, força física e saco para tentá-los. Outros... Quem sabe?
Friozinho na barriga para começar minha próxima aventura.
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