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Carla Lemos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Feministas queimaram sutiãs? Parece que não foi bem assim

União feminina não é um movimento recente - iStock
União feminina não é um movimento recente Imagem: iStock

Colunista de Universa

09/08/2021 04h00

Com certeza você já ouviu falar que feministas queimavam sutiãs. Eu mesma cresci ouvindo que "feministas são umas mulheres esquisitas radicais feias e mal-amadas que queimaram sutiãs em praça pública". Mas você faz ideia de onde surgiu essa história?

O ano era 1968, no final do verão americano rolava o Miss América e um grupo de mulheres resolveu protestar em frente ao centro de convenções onde acontecia o concurso de beleza. Era um grupo pequeno, cerca de 100 mulheres, que queriam trazer visibilidade para a causa feminista.

A escritora Roxane Gay conta que "elas estavam respondendo não apenas ao concurso e suas atitudes antiquadas e misóginas em relação às mulheres e à beleza, mas também à forma como os Estados Unidos, como um todo, tratavam as mulheres".

O concurso de miss começou como uma jogada de marketing para vender mais jornais. A partir de 1921, publicações do país todo começaram a publicar fotos de garotas jovens para que fosse eleita a mais bela.

O tipo de beleza que o concurso queria recompensar era muito específico e limitado — o da mulher recatada, esbelta, mas não muito magra, a "garota ao lado" com um sorriso branco brilhante, uma maneira paqueradora, mas não excessivamente assanhada, inteligente, mas não muito inteligente, certamente heterossexual. Até 1940, inclusive, existia a "Regra 7" que afirmava que as competidoras do Miss América tinham que ser "de boa saúde e da raça branca''. Mesmo sem a regra explicitamente racista, mais de 20 anos depois da abolição da regra nenhuma mulher negra tinha sido campeã do concurso (e a 1ª só ganhou em 1984).

Em 1968, as organizadoras começaram a divulgar o protesto algumas semanas antes, convocando mulheres de todas as frentes políticas. No dia, além de cartazes, as organizadoras emitiram um documento com 10 razões pelas quais estavam protestando, clamavam por boicote às marcas patrocinadoras e usaram a arte para reforçar a mensagem que elas estavam passando.

Usando táticas de teatro de guerrilha, as manifestantes surgiram com a "Freedom Trash Can", ou "Lata de Lixo da Liberdade", para as mulheres jogarem tudo aquilo que consideravam uma manifestação física da opressão, seus "instrumentos de tortura". E aí elas jogaram cintas, sapatos de salto alto, batons, cílios postiços e revistas como "Playboy" e "Cosmopolitan". Teve manifestante que jogou um detergente líquido rosa na lata de lixo declarando sua oposição a atrocidades como ter que lavar louça. Amiga, eu te entendo.

Dizer que mulheres estavam queimando sutiãs tinha mais impacto do que dizer por que elas estavam protestando

Uma dessas jovens manifestantes tirou o sutiã debaixo da blusa e atirou na lixeira, com palmas da plateia. Esse ato virou manchete no mundo todo e se espalhou a notícia: "Mulheres queimam sutiãs em protesto". Tem apelo, né? Chama atenção, desperta curiosidade, evoca facilmente aquela imagem clássica de bruxas dançando ao redor da fogueira jogando coisas no fogo para fazer magia? Só que, no caso, não tinha fogueira!

Na verdade, a BBC explica que tudo começou com a frase de uma repórter simpática ao movimento no "New York Post", dizendo "Homens queimam cartões de recrutamento e o que vem a seguir? Mulheres queimam sutiãs?". Fazendo paralelo entre o protesto delas e manifestações contra a Guerra do Vietnã. Era um questionamento, uma frase de efeito, que a galera tomou como verdade e saiu replicando mundo afora. Dizer que mulheres estavam queimando sutiãs tinha mais impacto do que dizer por que elas estavam protestando.

"Invocar a queima de sutiãs foi um meio conveniente de deixar de lado as questões e desafios levantados pela libertação das mulheres e desacreditar o movimento incipiente como superficial e sem sérias queixas", escreveu Campbell autor do livro "Dez das Maiores Histórias Mal Reportadas do Jornalismo Americano"

As organizadoras do evento afirmam que não houve fogo em nenhum momento. A única pessoa a afirmar isso é um repórter homem (e a eles não era permitido entrevistar as manifestantes, elas só concediam entrevistas às repórteres).

As mulheres que faziam parte desse protesto já tinham participado de outros movimentos sociais como o dos direitos civis e contra a Guerra do Vietnã. "Nós éramos jovens radicais e estávamos descobrindo o feminismo porque estávamos cansadas de fazer café e não política", disse Robin Morgan, umas das organizadoras, em entrevista à BBC. Elas já sabiam que os caras da direita não eram seus aliados, achavam que seus amigos da esquerda eram, mas descobriram que não era bem o caso quando começaram a falar sobre direitos das mulheres.

Por um lado, esse protesto é considerado por muitas historiadoras o grande marco da segunda onda do feminismo, o que impulsionou a causa e abriu o debate. Do outro, ele também foi usado para estereotipar e degradar a imagem do movimento, posicionando para a opinião pública como extremistas as mulheres que questionavam o sistema. É por isso que é tão importante que a gente continue a revisitar e contar a nossa história.