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Cris Guterres

Quando veio pandemia, surtei; minha empresa acumula prejuízo de R$ 500 mil

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Colunista do UOL

14/07/2020 04h00

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A pandemia de Covid-19 nos colocou em um cenário de inúmeras transformações. Mudanças significativas na maneira como nos relacionamos, trabalhamos ou criamos nossos filhos são sentidas em diferentes intensidades por todo o mundo. Vivemos a dificuldade em traçar panoramas positivos de futuro. A economia brasileira que já cambaleava antes do início da pandemia, respira momentos de estagnação e retrocesso.

Seja direta ou indiretamente, todos seremos impactados. Mas os grupos mais vulneráveis, principalmente a mulheres em trabalho informal, pequenas e médias empreendedoras e trabalhadoras em postos mal remunerados e com as relações de trabalho precarizadas sofrerão mais.

Não é segredo para ninguém que desde o início das medidas restritivas o setor de serviços, e nisso os pequenos negócios, foi o mais atingido. O salão de beleza, a pizzaria da esquina, o restaurante por quilo, a barbearia e principalmente os trabalhadores informais. Vendedores ambulantes, profissionais de atendimento domiciliar como a massagista, o fisioterapeuta, a manicure ou a diarista foram pegos em cheio. Grande parte destes profissionais são mulheres microempreendedoras, vendedoras de porta a porta, ambulantes que sobrevivem de "bicos.

Segundo o Monitoramento de Empreendedorismo Global (GEM), mais da metade das empresas criadas nos últimos três anos no país foram abertas por mulheres. Movidas, principalmente, pela necessidade de obter novas fontes de renda ou vencer o desemprego diante da falta de oportunidade e das barreiras impostas pelo mercado de trabalho em razão da maternidade, cor da pele, peso ou identidade de gênero. Ou seja, falar em pequenos negócios no Brasil é falar em negócios comandados por mulheres, sendo que a metade delas, segundo o Sebrae, são mulheres negras.

Antes mesmo de uma pandemia avançar pelo planeta, as mulheres já enfrentavam inúmeras dificuldades para manter suas empresas vivas. A principal delas é a dificuldade de acesso a investimentos. Em toda a América Latina, as mulheres compõem um número grande de empreendedoras que apontam a falta de crédito como o maior motivo para o fracasso de seus negócios.

Sem investimento não há como prosseguir. Eu sou uma destas mulheres, sou pequena empreendedora, conduzo um restaurante por quilo que tenta sobreviver em meio a toda esta crise e a minha maior dificuldade neste momento é conseguir investimentos que me permitam continuar mantendo as 14 pessoas que compõem minha equipe. Dez delas são mulheres brancas e negras, em sua maioria chefes de família, periféricas com filhos e sem moradia própria.

Eu já procurava investimento para permitir o crescimento da minha empresa há mais de dois anos. Os bancos só me concedem dinheiro emprestado se eu oferecer uma garantia em troca. Esta garantia em troca é sempre o pouco que temos: nossa casa, nosso carro, ou quando muito, uma pequena aplicação financeira. Eu nunca aceitei. Eu sei o quanto vale o pouco das minhas conquistas. Vale o tudo que tenho na vida e a minha possibilidade de reescrever uma história diferente para meu filho assim como meus pais fizeram pra mim.

Quando todo o comércio foi fechado como medida de restrição, primeiro eu surtei e depois fui buscar investimentos. Chega a ser desesperador. Uma empresa como a minha que fatura mais de R$ 2 milhões em um ano receber uma oferta de empréstimo de R$ 20 mil a R$ 50 mil. Eu não consigo nem arcar com a folha de pagamento de um mês, que dirá conseguir me reestabelecer e projetar estratégias de crescimento para momentos futuros.

Desde o início, optei por não engrossar os números de desemprego que atingem recordes alarmantes. Num momento em que mais da metade da população economicamente ativa do país está desempregada e sem perspectivas reais de conseguir um novo trabalho remunerado, venho equilibrando milhares de pratinhos na tentativa de manter o salário da minha equipe durante este período em que minha empresa já acumula prejuízo de mais R$ 500 mil.

Uma pesquisa do Sebrae com a Fundação Getulio Vargas apontou que apenas 14% dos micros, pequenos e médios empreendedores do país tiveram acesso a crédito oferecidos por programas do governo. Dos R$ 378 bilhões liberados para novos financiamentos, apenas R$ 31 bilhões, segundo a Federação Brasileira dos Bancos, chegaram às mãos dos empresários. Dos outros 86%, 58% tiveram o pedido de crédito negado e o restante, como eu, aguarda há mais de três semanas uma resposta dos bancos. Tempo crucial quando estamos falando de recuperação empresarial.

As medidas de distanciamento social são extremamente necessárias. O que mais agrava o recrudescimento das desigualdades no país é a maneira como o Estado decidiu enfrentar a pandemia. A ausência de um governo efetivo que tome decisões em prol da nação e reconheça a necessidade de estabelecer um recorte de raça e gênero no momento de desenhar políticas publicas urgentes é que nos faz ter ainda mais dificuldades para enfrentar a crise.

Dentre os muitos aprendizados que ficarão desta pandemia um é que o empreendedorismo não é uma fórmula mágica capaz de eliminar o desemprego e transformar o indivíduo em empresário dele mesmo. Numa sociedade neoliberal onde as relações de trabalho são desconstruídas para reduzir custos e diminuir a responsabilidade social do Estado uma pandemia de proporções nunca imagináveis chega para diminuir ainda mais as chances de sobrevivência da parcela mais vulnerável da sociedade.

As mulheres são as mais atingidas pela crise e também peças essenciais para enfrentamento da pandemia. O coronavírus não escolhe vítimas, mas a desigualdade no Brasil, país que insiste em manter vivas as relações coloniais, tem gênero e cor. Quanto mais escura a pele, maiores os desafios. A herança da crise é o agravamento das desigualdades. Serão necessárias medidas efetivas de transferência de renda para promover a recuperação econômica gradual da economia do país.