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Cris Guterres

Dona Neide é retrato do Brasil: servidão negra para proteger vidas brancas

Gravura de Jean-Baptiste Debret - Wikimedia Commons
Gravura de Jean-Baptiste Debret Imagem: Wikimedia Commons

Colunista do UOL

25/08/2020 04h00

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Esta semana li mais uma postagem no LinkedIn que escancara o quanto as relações no ambiente corporativo insistem em manter a lógica colonial intacta. Aliás, a maioria das fotos de equipe que são postadas nesta rede social parecem uma reprodução contemporânea de um dos quadros de Jean Baptiste Debret, pintor francês que aportou em terras brasileiras entre 1816 e 1831. Em seus quadros, vemos como se ordenavam as relações de servidão num país onde a escravidão era permitida já havia quase trezentos anos.

Embora dois séculos separem as fotos da rede social dos quadros de Debret, nada mudou na maneira como a sociedade brasileira insiste em estruturar as relações raciais no país. Continuamos assistindo pessoas negras servindo pessoas brancas. É como se os duzentos anos que separam as duas imagens não tivessem existido.

A postagem em questão trazia uma selfie do sócio-diretor de uma agência de publicidade, um homem branco, mostrando o escritório vazio ao fundo e a funcionária da limpeza, uma mulher negra, junto dele na imagem.

Acompanhando a postagem o seguinte texto: "Essa é a Dona Neide! Uma mulher incrível e batalhadora que vem todos os dias na [nome da empresa] (com todos os cuidados) garantir que os procedimentos de higiene e limpeza da agência sejam preservados, mesmo com o time em home office facultativo! Obrigada, dona Neide".

Obrigada Dona Neide por vir trabalhar todos os dias de transporte público para limpar um escritório que tem sido pouco utilizado e garantir que os procedimentos de higiene e limpeza sejam preservados para uma equipe que, muito diferente da senhora, pode decidir se vai ou não ao escritório. Obrigada, Dona Neide, a senhora foi escolhida para se sacrificar em nome de outras vidas que merecem ser protegidas.

Depois que o planeta foi acometido pelo Covid-19, as empresas precisaram determinar um reordenamento interno para a execução das atividades. Algumas funções foram definidas como facultativas, outras puderam ser executadas a distância através do atualmente famoso home office. Dona Neide não pode fazer home-office, seu serviço é operacional. Ela precisa se deslocar para executar sua atividade.

Se a empresa realmente olhasse para os profissionais que realizam os serviços de limpeza com humanidade já teria percebido que estão obrigando uma pessoa a se deslocar diariamente para limpar um escritório que ninguém está utilizando. O descaramento na romantização de relações desumanas de trabalho é sempre muito violento para quem está do lado mais fraco da corda.

Milhares de trabalhadoras domésticas e auxiliares de limpeza não podem se dar ao luxo de esconder o sorriso para o patrão na hora da selfie. Se não tem sorriso na foto não tem comida na mesa e nem aluguel pago no fim do mês.

Dona Neide é o rosto que representa as mais de 110 mil mortes por Covid no país. Embora a doença tenha entrado no território nacional por meio de pessoas ricas que viajaram para o exterior, a maioria dos óbitos está entre as pessoas em maior vulnerabilidade social.

Os números de mortalidade por Covid no Brasil acompanham os vergonhosos índices de desigualdade. Estudos do site Medida SP demonstraram que, na cidade de São Paulo, 66% dos óbitos foram registrados entre pessoas que moravam em regiões onde a população concentra renda inferior a três salários mínimos. Já em regiões com renda superior a R$ 19 mil foram registradas pouco mais de 1% das mortes.

Com relação ao tom de pele o número de vítimas fatais é maior entre as pessoas negras. Pretos e pardos representam 40% das mortes totais enquanto brancos são 26%. A doença não escolhe gênero e nem cor, mas a precarização das políticas públicas de saúde, a insistência na manutenção de relações coloniais de trabalho são alguns dos determinantes para que os números de mortes sejam maiores entre as populações periféricas.

Covid ataca os pulmões, tira o ar, sufoca. E mais uma vez a população negra grita que não consegue respirar.

Diante dos comentários desfavoráveis e dos questionamentos que trouxeram à tona o desrespeito da agência para com a Dona Neide, o sócio se pronunciou afirmando mudanças no trabalho da equipe de limpeza de modo a aumentar as medidas de proteção.

Não podemos permitir a hierarquização de vidas. Este é mais um caso-síntese do Brasil. Para que pessoas brancas sejam salvas uma maioria negra se sacrifica. O que mais espanta na naturalização da servidão neste país é o fato de que mesmo tendo o trabalho mais essencial da empresa, pois a profissional foi obrigada a trabalhar embora o escritório estivesse vazio, ainda assim, possivelmente tem o menor salário do ambiente.