Quem são as mulheres que suportam este país em suas costas
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Escrevo esta coluna completamente influenciada por um texto que a filósofa e minha mentora espiritual (embora ela não saiba deste segundo título) Djamila Ribeiro escreveu na "Folha de S. Paulo". Depois de ler que "o Brasil é, sem dúvida, um país de realeza negra, é preciso romper com a ilusão", só consigo pensar em escrever sobre a potencialidade que vem da minha ancestralidade.
Djamila propõe uma reflexão sobre quais são os conhecimentos valorizados em nosso país e traz a rica história de Efigênia Clara de Souza Moreira, uma mulher negra cujos frutos se espalharam pelo Brasil e pelo mundo.
Ao ler o texto, eu só conseguia pensar em minha mãe. Eleni foi uma das mulheres mais inteligentes que eu já conheci. Costumo dizer que qualquer multinacional que valorizasse a diversidade colocaria essa mulher em seu conselho participativo, pois a inteligência e o conhecimento dela eram incomensuráveis.
De família muito pobre da zona da mata mineira, Eleni veio aos 16 anos pra São Paulo sem nenhum centavo no bolso e um pedaço de lençol embrulhando dois vestidos e um punhado de sonhos pequenos, pois a vida difícil não a permitia nem de sonhar.
Veio trabalhar como empregada doméstica numa casa de família e ali ficou por mais de dez anos. Em São Paulo conseguiu completar o ensino fundamental, mas resolveu passar para os filhos o sonho de seguir com os estudos, não se via qualificada para ir além. Quando não temos ninguém nos dizendo que podemos ir longe fica difícil traçar um caminho até as estrelas.
Com o passar dos anos, ela, foi aprendendo a sonhar grande. Lia o jornal diariamente depois que a patrão o jogava no lixo, ia aprendendo sozinha com o que lia e certo dia surpreendeu a patroa quando disse que seu sonho era contar o próprio dinheiro.
"Eleni, para contar dinheiro você precisará arrumar um emprego de caixa de supermercado", ouviu. "Não, você não me entendeu", disse ela, "eu vou contar meu próprio dinheiro".
Coitado daquele que ousasse não acreditar em minha mãe. Ela era capaz de tudo.
Eleni casou-se com Manoel e tiveram dois filhos: eu e Marcelo, o caçula deficiente intelectual que transformou a vida da nossa família. Minha mãe parou de trabalhar para acompanhar Marcelo em suas incontáveis idas aos psicólogos, neurologistas e profissionais de acolhimento. Ainda assim, ela era a mentora da casa. Ditava as regras financeiras do lar e ai do meu pai se a desobedecesse.
Minha mãe era formada em gestão de crise na escola da rua. A vida difícil havia transformado ela em especialista em gestão da escassez. Todas as crises que passamos foram bem geridas porque esta mulher que havia nascido numa família onde dois pães eram o café da manhã de onze crianças sabia lidar exatamente com o que deveria ser feito sempre que tínhamos uma instabilidade.
Desde pequena eu recebi lições de administração financeira com minha mãe. Eu ganhava uma pequena mesada e era obrigada a guardar metade do que eu ganhava para ter uma reserva prudente. Me lembro até hoje das longas conversas em que minha mãe, uma mulher que nem fez o ensino médio, me falava de reserva prudente aos 7 anos de idade.
Depois de uma vida inteira fazendo a reserva para a realização daquele sonho de contar seu próprio dinheiro, ingressamos no empresariado brasileiro ainda sendo considerados mero quituteiros. Ela e meu pai comparam um restaurante e começaram a modificar as configurações do que seria um empresário de sucesso neste país. Estava a população sim fadada a se engasgar com dois negros sendo os donos de um restaurante numa das regiões mais ricas do país.
No Brasil, terra onde tudo que se planta dá, é incerto plantar prosperidade quando não se nasce rico. Somos uma das nações mais burocráticas do planeta para se abrir uma empresa. A maioria das pessoas que inicia o sonho empreendedor acaba se afogando em curto período, alguns por falta de planejamento e grande parte porque os mecanismos e taxas do Estado os sugou para o fundo do poço.
Antes da pandemia, segundo dados da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), mais de 50% dos restaurantes que abriam no país fechavam as portas nos primeiros dois anos. Diante da imensa possibilidade de dar errado, meus pais criaram uma empresa com valores sólidos que fará 18 anos no próximo mês de janeiro.
No primeiro dia de vendas, ao final do expediente, minha mãe pegou o dinheiro do caixa, contou, olhou pra ele e falou: "Eu disse que um dia eu iria contar meu próprio dinheiro. Demorei 30 anos, mas eu consegui".
E desde aquele dia 9 de janeiro de 2003 seguimos crescendo com os conhecimentos da nossa gestora de crises formada na escola da escassez. De empregada doméstica a dona de restaurante ela foi administrando tudo com maestria porque sabia sempre o que fazer em qualquer momento, qualquer fosse o problema, qualquer que fosse a situação.
Conhecimento, estudo nas melhores faculdades, MBA, duas línguas, você pode ter tudo isso, mas de nada te valerá se você não tiver as manhas, e ela tinha as manhas. Ela tinha as manhas que a gente aprende na vida difícil, as manhas que são ensinadas nas periferias, as manhas que são herdadas no gene de um povo que nem deveria ter sobrevivido, as manhas de um povo que, como lembrou Djamila, dançou capoeira sabendo que era luta, trançava em seus cabelos rotas de fuga e encontrou maneiras, estudos e métodos de driblar as tentativas sofisticadas de apagamento.
Quando se iniciaram as medidas de isolamento geradas pela covid-19 minha mãe tinha falecido havia 8 meses e meu pai há sete anos. Quando fui consultar especialistas sobre o que fazer com a nossa empresa durante o período de dificuldades, eu descobri que tudo o que eu estava ouvindo de profissionais com as melhores graduações do mercado eu já tinha aprendido na convivência com a minha mãe.
Eu tinha reserva prudente, fluxo de caixa, eu tinha múltiplos fornecedores, tinha equipe de trabalho envolvida com os valores da empresa, tinha conhecimento sobre o meu negócio, eu sabia o que fazer porque ela tinha me ensinado como sobreviver a qualquer tentativa de limitação da minha sabedoria e dos meus valores. Se hoje eu consigo decidir o que é melhor para mim é porque ela me ensinou que eu poderia ser uma mulher livre e qual caminho percorrer até esta liberdade.
Mulheres negras e inteligentes como Eleni temos aos montes suportando este país nas costas. Mas a elas relegamos os postos de fortes, guerreiras e resilientes. A elas negamos as cadeiras de decisão, a elas negamos o direito de fala, negamos o direito à vida.
Entramos em novembro, um mês em que as discussões sobre a identidade racial brasileira se intensificam. E neste mês, quero deixar a história da Eleni da Silva Guterres gravada através de minhas palavras.
Esta é a história de mais de 36 milhões de outras mulheres negras brasileiras. Mulheres com narrativas muito parecidas, ainda que nem todas tenham filhos, ainda que nem todas tenham trabalhado ou trabalhem como domésticas, estamos falando das mulheres que suportam o país em suas costas.
Mulheres que merecem destaque, merecem reconhecimento por terem participação elementar na construção do Brasil. Estas são as verdadeiras bandeirantes merecedoras de um monumento erguido em praça pública.
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