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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não romantize as relações de trabalho: sua empregada não é quase da família

FG Trade/Getty Images/iStockphoto
Imagem: FG Trade/Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

23/02/2021 04h00

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Há poucos dias, compartilhei um post em meu perfil no Instagram de um benevolente empregador que fotografou a babá cozinhando e escreveu sobre a foto o seguinte texto: "Hoje eu pedi pra babá fazer um jantar para uns amigos que viriam aqui em casa... Ela não sabia que o jantar era pelo aniversário dela!"

Um jantar para a pessoa que cuida das suas crianças. Seria uma bela homenagem a um prestador de serviço que tem como função cuidar do que você tem de mais precioso em sua vida, seus filhos. Tem muito empregador que mal sabem o nome ou sequer pergunta a história de vida da babá. Este não só sabia o dia do aniversário como também quis homenageá-la.

Mas tem uma questão muito sutil nesta homenagem. A babá cozinhou a comida do seu próprio aniversário surpresa. "Eu pedi pra babá cozinhar". Ela é uma babá ou uma cozinheira?

Vivemos num país onde as relações de trabalho doméstico são extremamente frágeis e essa fragilidade tem um peso arrebatador para o empregado. Por uma questão estrutural, os mais vulneráveis são sempre os mais atingidos.

Como você pode querer homenagear uma pessoa que trabalha com você dando a ela ainda mais trabalho? E um trabalho que nem é o dela.

O Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio, tem 6,3 milhões de profissionais trabalhando em atividades domésticas. Destes, apenas 1,5 milhão está registrado com carteira assinada, outros 2,5 milhões atuam como diaristas, sem vínculo empregatício e o restante, a maioria, está à mercê de relações de empregabilidade criadas de maneira que só beneficiam a quem contrata e nunca ao contratado.

Muitos trabalham em situações análogas à escravidão e ainda consideremos um número imenso de crianças exercendo estas atividades em um país onde a regulamentação do trabalho doméstico tem menos de 10 anos.

Minha mãe foi empregada doméstica, minhas tias também foram e algumas ainda são. Minha mãe sempre me dizia que se um dia eu tivesse que ser doméstica, que eu nunca deixasse que me dissessem que eu era quase da família. Pois este "quase", segundo ela, invisibiliza os nossos direitos enquanto profissionais, mascara a relação e tira do empregador algumas obrigações para com o empregado.

Se o empregado é quase da família logo não precisa ser registrado, se ele é quase da família logo pode ficar até mais tarde, se ele é quase da família logo pode trabalhar ali a vida toda, anular seus sonhos só pra eu insuflar o peito orgulhosa e dizer que meu empregado está em casa há 3 décadas e é quase da família.

Essa insistência em se orgulhar de ter uma empregada doméstica em casa há décadas é resquício do período colonial. A pessoa parece esperar um parabéns ao contar orgulhosa que sua empregada está trabalhando há mais de 30 anos, e é quase da família.

Este "quase da família" é a romantização das relações violentas de trabalho de maneira que esta relação se torne palatável para quem dita as regras, porque pra quem obedece é quase sempre muito evidente o quanto ela não é justa.

Como pode ser quase da família alguém que dorme no quarto de despejo, muitas vezes um quarto úmido e sem ventilação?

A sua empregada é uma profissional, ela não precisa sentar-se à mesa com você pra fazer as refeições, mas você pode garantir a ela todo e qualquer direito que a lei permite. Se você realmente quer homenageá-la que não seja dando a ela mais trabalho. A relação é totalmente trabalhista. Um profissional que se destaca deve ser reconhecido financeiramente ou com incentivos para o seu desenvolvimento pessoal.

Aquele que é "quase" não é, nunca foi e nunca será. Que me desculpem as domésticas que se sentem orgulhosas de ouvirem esta frase, mas você não é da família a menos que seu nome conste no testamento familiar.