Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Série sobre Karol Conká e "Them" mostram sofrimento negro como espetáculo
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Assisti numa tacada só à primeira temporada de "Them", série da Amazom Prime lançada no mês passado. Maratonei em cinco horas seguidas. Olhos vidrados na tela. Saídas entre um episódio e outro só para ir ao banheiro e reabastecer o pote de pipoca.
Confesso que amei. Achei brilhantes as conexões históricas presentes na série de maneira subliminar. "Them" entrelaça experiências da vida real com a narrativa dos personagens. Explora de maneira profunda traumas raciais históricos. E demonstra como a brutalidade pode se esconder por debaixo de vestidos floridos e sorrisos amorosos.
'Them' seria, para mim, uma série perfeita, não fosse por uma questão importante: a espetacularização do sofrimento humano, mais especificamente do sofrimento de pessoas negras
Depois que assisti "Them" e conversei com outras pessoas, percebi que estava tão acostumada a ver pessoas negras sofrendo e morrendo nas telas que a violência presente na antologia foi naturalizada por meus olhos.
A série escrita por Little Martin e produzida por Lena Waithe se passa em 1953 e conta a história dos Emory, família negra que migra para a Califórnia em busca de prospecção econômica e em fuga dos violentos ataques da Ku Klux Klan no sul dos Estados Unidos. No decorrer da trama, os Emory são violentamente assombrados por forças malignas e pelos novos vizinhos brancos que são capazes das piores atrocidades para não conviverem com uma família negra na vizinhança.
Tanto os filmes e as séries quanto os programas jornalísticos que reproduzem as histórias cotidianas de maneira manipulada contribuem por nos fazer acreditar que os negros merecem morrer e estão sempre fadados a um sofrimento de intensidade desumana
Outra produção lançada recente que também transforma sofrimento em espetáculo é "A Vida Depois do Tombo". O documentário parece uma tentativa de humanizar a rapper Karol Conká após a sua saída do BBB 21 com uma rejeição de 99,17%, a maior de todas as edições do programa pelo mundo, mas acaba expondo a cantora a um pedido de desculpas infinito.
Quantas vezes Karol terá que pedir desculpas? No programa do Faustão, na Ana Maria Braga, no "Saia Justa", no documentário. Onde mais vão colocar uma imagem de Karol Conká aos prantos pedindo perdão?
Ver mulheres negras chorando na televisão virou algo corriqueiro, esperado e naturalizado. A lágrima, clara e salgada destas mulheres pesa uma tonelada, mas aos olhos de quem assiste acaba se tornando só mais uma gota que pinga de uma infiltração sem controle. A gente coloca um balde debaixo da goteira e vai viver
Na produção, Karol é confrontada com as imagens dos abusos que cometeu dentro da casa. Rodeada por telões imensos, uma cadeira vazia ao seu lado marca a ausência de Carla Diaz e Bil Araújo, participantes com quem teve atritos no BBB e que se recusaram a participar das gravações. Lucas Koka Penteado alegou não estar preparado emocionalmente para se encontrar com a rapper e gravou um vídeo que foi acrescentado ao documentário.
Na verdade, nem a própria Karol estava preparada emocionalmente para essa gravação. Ela saiu de um "Big Brother" diretamente para outro e tentar construir uma imagem de arrependimento em tão pouco tempo pode soar falso e entregar munição para os haters.
Sabemos que a evolução pessoal necessita tempo. Estamos falando de um processo que precisa ser vivido pela cantora por um período longo e com muito acompanhamento psicológico. Ela se tornou a mulher mais odiada do país em poucos dias. Sua performance no BBB foi desastrosa e a tentativa de humanização no documentário pode estender este desastre por expor situações conflituosas de Karol no universo musical. Tentar justificar a falta de empatia e controle emocional de Conká pode ser ainda mais prejudicial para a própria cantora.
O documentário foi mais uma bela sacada comercial da Globo que é a grande ganhadora de toda essa espetacularização. Produzido em tempo recorde, "A Vida Depois do Tombo" já se tornou, em poucos dias, o programa mais assistido da plataforma de streaming da Globo. A rejeição em massa de Conká pode ter arruinado sua carreira, mas certamente encheu os cofres da Globo.
No fim, chegamos a um dado econômico do qual deveríamos nos envergonhar. Tanto em "Them" quanto e "A Vida Depois do Tombo", temos pessoas brancas ficando milionárias com o sofrimento de pessoas negras. Nada mudou em cinco séculos, lágrimas de pessoas negras continuam sendo comercializadas nesta sociedade onde o dinheiro escolhe a cor que tem valor.
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