Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
No Brasil, "má sorte" tem cor: quem protegerá os filhos das mães pretas?
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Rafael está deitado na cama, com semblante sereno e dormindo tranquilo, quando entro no quarto para ter certeza de que a cria está bem acolhida sob minhas asas. Entro ligeiramente aflita. Vou acalmando enquanto zelo seu sono por alguns minutos.
Acabo de ler na internet a reportagem sobre o jovem que foi abordado na porta de um shopping no Leblon, bairro rico da zona sul do Rio de Janeiro, acusado por um casal de ter roubado uma bicicleta elétrica. Matheus Ribeiro filmou parte da ação, exatamente no momento em que os dois jovens brancos se davam conta de terem acusado injustamente o instrutor de surfe.
Matheus é jovem e negro, assim como meu filho Rafael. Dois meninos que são a cara do enquadro. No país onde a escravidão nunca terminou, eu temo todos os dias quando ele sai de casa vestido com as roupas de marca que comprei com o suor do meu trabalho
Frequentemente, ele chega dizendo que ficaram olhando para ele no mercado, que alguém andava como sombra atrás dele no shopping ou que foi abordado por policiais na rua.
"Mãe, ele disse que queria saber o que aquele neguin bem trajado fazia andando fora da favela", conta.
"Me prova que este celular é seu, 'neguin'. De onde você tirou dinheiro para ter um celular desses? De quem você roubou esse tênis?", dizem.
Pois é, meu caro leitor, vida de mãe nunca foi fácil. Mas mãe de criança preta, então, é duplamente difícil. Não tem guarita. A gente só pode contar com a proteção de Deus
Alguns disseram que Matheus estava na hora, dia e local errados, má sorte. Teria acontecido com qualquer um que estivesse com uma bicicleta igual a dos jovens que acabaram de ser roubados.
Não! A má sorte aqui tem cor, assim como as balas perdidas com destino certo, que só matam filhos de preto para "proteger" a sociedade dos playboys da calçada do Leblon, os tais 'cidadãos de bem'
É óbvio que Matheus foi considerado o ladrão da bicicleta por ser preto, assim como muitos de nós nos tornamos ladrões dos nossos próprios carros, como meu filho se torna o ladrão do seu próprio celular cada vez que uma viatura passa por ele na rua.
Matheus e Rafael sequer são considerados humanos. Aqui, preto é objeto. Só a destruição deste mundo permitiria que um preto deixasse de ser considerado uma mercadoria para se tornar um cidadão. Nos planos projetados para um Brasil do futuro, nunca teve espaço para um jovem como eles.
Dias depois, a surpresa. O suspeito de roubar a bike é branco. "Loirão", velho conhecido da polícia, famoso por furtar bicicletas no Rio de Janeiro. Usa e abusa da sua passibilidade de cor. Jovem, loiro e acima de qualquer suspeita. Inclusive, já goza de liberdade porque neste Brasilzão onde Deus nada vê, definitivamente, cadeia não é para branco.
Este é um caso com inúmeras reviravoltas. Matheus, o jovem instrutor, passou de vítima de racismo a suspeito por receptação. Comprou a bicicleta de um vendedor na internet e a polícia acaba de descobrir que se trata de uma bike roubada. Matheus alegou não saber, acreditou ter comprado de uma pessoa idônea. Se não conseguir provar sua inocência, corre o risco de ser preso, enquanto o verdadeiro ladrão da bike está em liberdade para voltar ao trabalho, afinal, o mercado clandestino de bicicletas roubadas não pode parar.
Os jovens que acusaram Matheus foram previamente punidos pelas empresas onde trabalhavam. Mariana Spinelli e Tomás Oliveira foram demitidos logo após o vídeo ter se tornado viral. Medida arbitrária típica de empresas que preferem tratar o racismo a partir da pauta do silêncio e do medo. Manda logo este funcionário embora e a gente não precisa mais lidar com este problema.
As empresas perderam a real oportunidade de assumirem uma postura antirracista e promover ações em prol da diminuição da violência racial, mas como diz Franz Fanon: "a psique da sociedade quer que o negro resolva seus próprios problemas."
Eu vou resolvendo o meu a minha maneira... Ensinando meu filho a reagir quando possível, a não correr perto de policial. Digo para não encarar para não ser esculachado em enquadro, deixar a nota fiscal de produtos caros sempre à mão e nunca comparar nada de procedência duvidosa.
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