Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
"Vai pra favela": em bairro de rico, a polícia chega pedindo licença
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O endereço é rua Canadá, Jardim América, bairro de altíssimo padrão na zona oeste de São Paulo. No casarão, funciona o escritório Adib Abdouni Advogados. Foi lá que a polícia bateu na madrugada do último sábado (11), após receber denúncias de uma festa clandestina no local, violando as restrições sanitárias impostas pela pandemia de covid-19. Segundo o governo de SP, mais de 500 pessoas se aglomeravam no espaço, a maioria sem máscara.
A festa foi organizada para comemorar o aniversário de uma "socialite" que não teve o nome divulgado. Para participar, cada convidado desembolsou cerca de R$ 1,6 mil e teve a garantia de que não haveria importunação por parte da fiscalização. Um show da dupla sertaneja Matheus e Kauan estava incluso.
Uma das pessoas que circulavam na festa sem máscara é Liziane Gutierrez. A mulher se identifica nas redes sociais como advogada e influenciadora digital. Em um dos vídeos da abordagem que viralizaram na internet, Gutierrez profere inúmeros palavrões aos policiais e agentes envolvidos na operação, gritando: "Vai pra favela". Desacata as autoridades e sai, tranquilamente, sem ser abordada ou presa.
No estacionamento do escritório onde acontecia o regabofe, só carros luxuosos. Land Rover, BMW, Lamborghini e Jaguar.
A polícia, quando faz abordagem em lugares como este, chega pedindo licença e falando 'por favor'. Na favela, é tapa na cara, chute no estômago e tiro na cabeça
Se você é uma mulher ou homem branco e faz parte da pequena porcentagem de pessoas do país que não moram na periferia, saiba que tem passe livre para insultar, desacatar e dar as costas à polícia. No momento de uma abordagem, essas são atitudes que uma pessoa negra ou um morador de periferia nunca poderá tomar na vida.
O privilégio da alva tez garante possibilidades de existência e respeito que uma pessoa preta não tem
Sabe por que a tal influencer diz à polícia "vai pra favela"? Porque na favela, quando a polícia chega para acabar com aglomeração, ela sai com sangue nas mãos. Foi o que aconteceu em dezembro de 2019, na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, quando nove jovens foram mortos durante uma operação policial para acabar com um baile funk.
Em maio do ano passado, no bairro de Parelheiros, extremo sul da cidade, a polícia militar foi chamada para verificar uma denúncia de som alto na porta de um bar. Chegando lá, agrediu a proprietária, uma mulher preta de 51 anos. Além de ter a tíbia quebrada durante o espancamento, ainda foi presa por desacato.
Não tem "por favor", não tem "obrigada", não tem "com licença". Tem estampido de bala e surra de cacetete. Tudo veiculado em algum programa de TV apresentado por homens misóginos, racistas e homofóbicos, que ganham milhares de reais para manter em voga a ideia de que crime só acontece na favela. Um sistema de controle estruturado para manter e reproduzir as desigualdades.
Na favela, a polícia bate, agride, arrasta o rosto no asfalto e pisa no pescoço quando chega para averiguar uma denúncia de aglomeração na pandemia
Liziane Gutierrez, que é apoiadora do presidente Jair Bolsonaro, costuma se exibir nas redes sociais com uma camiseta escrita #elesim. O show "vai pra favela" da tal cidadã de bem lhe renderá milhares de seguidores na internet e alguns minutos de fama. Se fosse uma mulher negra e tivesse seu corpo historicamente marcado pelo passado escravocrata, estaria encarcerada.
Ao restante da sociedade, que sabe o quão seletivo é sistema prisional que pune prioritariamente a população negra, cabem a reflexão, a conversa e a luta coletiva.
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