Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Seis mulheres pretas que ressignificaram suas vidas por meio da escrita
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"Hei de vencer como servente escolar", dizia Maria Clarice Rafael Ribeiro, 69 anos, quando trabalhava na escola Jardim João XXIII na zona oeste de São Paulo. A matriarca criou seis filhos, entre eles, duas professoras que se formaram na sua época do magistério: Kerllen e Sandra.
A primeira, Kerllen, cursou pedagogia e formou o filho, o jovem advogado Wilton da Silva, de 26 anos. A segunda, Sandra, é mãe de Domênica e aposentada com diagnóstico de esquizofrenia. Ela se orgulha de ter conquistado o direito à aposentadoria após anos de dedicação ao ensino público. "Se não fosse a dedicação à leitura e a resiliência durante anos na Prefeitura, eu não teria esse valor da aposentadoria", declara.
Essas professoras, Kelinha e Sandrinha, como eram chamadas carinhosamente pelas sobrinhas, viram no estudo um meio de sustento e de transformação, não só de suas histórias pessoais, como também da história de vida dos seus descendentes.
Isto mostra que escrever e sobreviver — estes dois verbos que, inclusive, rimam — traduzem o cotidiano de uma geração de mulheres negras que podemos definir como "frutos do sacrifício" de suas ancestrais, pois tiveram acesso à palavra (escrita ou oral) e utilizaram esse "poder" para sustentar suas famílias e, ainda, para incluir outros tipos de compreensão social em espaços nos quais a palavra é instrumento de trabalho, seja nas salas de aulas, nos meios de comunicação ou nos livros.
Joyce Ribeiro: uma mulher negra contando a história de outra mulher negra
A primeira vez que a história da Chica da Silva foi contada por uma mulher negra foi no livro "Chica da Silva: Romance de uma Vida'', de autoria da jornalista e escritora Joyce Ribeiro. Por muito tempo percebemos no teatro, na televisão, no cinema, nos livros e até mesmo nas escolas a ausência de personagens negros ou um retrato estereotipado deles, apesar da Lei Federal nº 10.639/03 que obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio.
Nesse contexto, percebemos o quanto é urgente e necessário que autoras negras tragam a sua sensibilidade e escrevam sobre personagens negras com um olhar mais aproximado. É preciso permitir que a própria mulher negra apresente a sua história nos variados espaços demonstrando a sua capacidade intelectual, seu poder de observância, sua criticidade e sua percepção do papel que exerce. Esse pode ser um caminho para nos desfazermos dos estereótipos e criarmos novos padrões.
"Isso muda percepções e sentimentos que são captados. São aproximações da autora com a personagem que, por meio de outros olhares, podem ser interpretados de maneiras diferentes" declara a jornalista Joyce Ribeiro, que recentemente lançou o livro em Portugal. Ela destaca que Chica da Silva incentivou os seus catorzes filhos (homens e mulheres) a estudarem, uma nuance que não havia sido mostrada em obras anteriores que retrataram Chica da Silva.
"Quando eu falo da ligação com os problemas do passado, desse sentimento mais próximo da personalidade da Chica e dos problemas reais que as mulheres negras de hoje enfrentam, percebo que ela estava sentindo uma dor semelhante à que sentimos hoje. A dor de saber que temos outras pessoas que dependem de nós, o peso maior do que podemos suportar e isso não vem de hoje, vem desde a Chica", diz Joyce, que pretende trazer outras nuances dessa personagem já retratada no cinema e na televisão, mas com imagem de excêntrica, escandalosa e amoral.
Em entrevista, Joyce Ribeiro destacou que "sempre foi uma exceção" como mulher preta nos locais onde atuou no jornalismo e na escrita.
Cristiane Sobral: em meio aos desafios, há a alternativa de aquilombar-se
A atriz, escritora e professora de teatro carioca Cristiane Sobral resolveu empreender em 2020, com a criação da editora Aldeia de Palavras. "Quando fiz as minhas escolhas de alma: o teatro, a literatura e a educação, sabia que tinha escolhido caminhos difíceis", afirma. Ela ressalta que viver dos livros é algo desafiador e cansativo em um país onde o tal "padrão europeu" ainda orienta privilégios em muitos setores, inclusive, no mercado editorial.
Foi com o lançamento de um texto nos "Cadernos Negros", há vinte anos, que Cristiane começou a cultura do "aquilombamento" que permitiria, por meio de várias publicações desde então, o compartilhamento das reflexões e da luta pela escrita com outros autores e autoras negras.
Nessa cultura de quilombo, a editora de Sobral, a Aldeia das Palavras, lança a antologia "Pretos em Contos - Volume 2", que reúne 18 escritores negros, entre eles, as autoras: Débora M. Andrade, Denise Nascimento, Ifè Oadq, Kátia Moraes, Luana Levy, Maza Dia Mpungo, Shirley Maia, Suedi Fernandes e Maza Dia Mpungo.
Maza observa que a presença de mulheres negras no mercado literário tem crescido bastante — tanto como escritoras, como consumidoras —, mas essa escrita ainda não conseguiu chegar a um público maior. "Ainda escrevemos para os nossos", ressalta.
Para o idealizador do livro "Pretos em Contos", Plinio Camillo, ter potências negras escritoras liderando o "Pretos em Contos - Volume 2" traz todas as camadas do ser negro ontem, hoje e talvez amanhã. "Ilumina todos os caminhos para superarmos os racismos estruturais, culturais e institucionais. Abrilhanta o prazer de ler!", afirma.
Abaixo, trecho de um conto de Ifé Rosa Oadq que faz parte do livro.
NASCEU COM UM PÉ NA COZINHA
— Já viu aquela neguinha de cabelo Bombril?
— Vi a mulata descendo a rua toda faceira.
A loira da janela do bar exala sua inveja branca.
— Cê viu sua pele da cor do pecado?
— Chêga brilha quando o sol estrala na quebrada.
— É fi, a coisa tá preta, ela passa aqui todo dia pra ir pra faculdade e nois dois aqui com os pés na cozinha.
Silvana Inácio e Olívia Rodrigues: assessoras de imprensa que lidam com histórias que, para serem publicadas, precisam de aprovação na redação
Essas profissionais fazem a ponte entre aqueles que querem ser vistos e aqueles que podem fornecer este espaço de visibilidade. Sua ferramenta de trabalho são textos em formato de notas, releases ou artigos. Elas precisam escrever de forma estratégica para emplacar as histórias, ou seja, convencer os colegas que, como Joyce Ribeiro, estão nas redações a publicar o conteúdo produzido por suas agências. Ainda persiste a discussão se assessoria de imprensa é jornalismo.
Quando essas assessoras são mulheres pretas, será que conseguem espaço para seus assessorados de forma igualitária? Quantos jornalistas como Joyce Ribeiro estão nas redações da grande imprensa e têm a sensibilidade e o interesse por determinadas sugestões de pauta?
A jornalista Silvana Inácio tem uma opinião. CEO da SI Comunicação e primeira da família a cursar a universidade, Silvana destaca o quanto seus pais lutaram para que os filhos pudessem concluir o curso superior. Ela conseguiu se formar, mas ressalta o seguinte: "Não escolhi trabalhar como assessora. Na verdade, esta foi a porta que se abriu, pois as redações ainda são majoritariamente brancas".
Silvia, que é da época em que os assessores usavam máquinas de escrever e os releases eram enviados pelo correio, entende que a assessoria não é só a rede de contatos e nem só o texto. "A escrita e o relacionamento têm o mesmo peso, não adianta ter um bom texto sem ter relacionamento. Na pandemia, quem não tinha bons contatos sofreu muito", conta.
Ela compartilhou que, no contato telefônico, não sentia dificuldade para divulgar suas pautas "porque a pessoa do outro lado do telefone não vê a cor", mas, nos eventos presenciais, Silvia narra que, por várias vezes, percebeu olhares mais críticos. Hoje entende que, com seu trabalho de assessoria de imprensa, consegue fazer com que as páginas e capas dos jornais e revistas fiquem "mais negros".
Já a assessora formada em marketing, Olivia Rodrigues, que atua há 15 anos no mercado de assessoria, conta que atua no meio artístico e hoje lida com, no mínimo, 15 textos semanais, fora o conteúdo produzido para as redes sociais. Ela destaca que o fato de não frequentar festas e não estar em alguns meios já comprometeu ou limitou muito o seu trabalho, que ganha maior notoriedade no dia 13 de maio (Dia da Abolição da Escravidão no Brasil) ou no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Segundo ela, mostrar para a imprensa a relevância do seu trabalho e dos assessorados negros fora dessas datas é outro desafio.
Quantas vezes os assessores, sobretudo os que não transitam em certos espaços, tiveram suas sugestões de pautas negadas e depois viram o texto aceito e publicado no mesmo veículo que fizeram a sugestão, porém oferecido por outro assessor?
Algo em comum
Todas as entrevistadas têm em comum a negritude, a escrita e duas referências: Carolina de Jesus e Conceição Evaristo, mulheres que abriram caminhos para uma infinidade de mulheres pretas que hoje encontram na escrita o seu lugar.
*Clarice Tatyer atua como assessora de imprensa e repórter.
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