Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Natália do 'BBB' chorou porque sabe que o amor não é para mulheres negras
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O tema deste texto me é muito caro. Enquanto mulher negra, me propor a falar de amor é como se eu estivesse me sentindo nua em plena estação de metrô da Sé, a maior de São Paulo, em horário de pico. Vulnerabilidade em plena exposição. Todos me veem nua, me ouvem clamar por ajuda, me julgam e não me ajudam, ninguém é capaz de me cobrir.
Para facilitar, resolvi falar de amor utilizando um ocorrido na madrugada de domingo (23) no "Big Brother Brasil". O "BBB" é uma atração em que podemos observar o comportamento de pessoas reais. Na casa, muitas das realidades diárias de uma sociedade são expostas em tela. E nós, telespectadores com alto poder de julgamento, ficamos atentos a todos os deslizes. Afinal de contas, comentar o comportamento dos outros é o nosso melhor passatempo enquanto indivíduos sociais.
Então partiremos a falar de BBB. Minha personagem de hoje será a sister Natália. Eu me reconheço muito em Natália. Durante a primeira festa da edição, ela assumiu a dianteira em relação a Rodrigo, brother com quem flerta desde o início do programa e cujo comportamento fez com ela acreditasse haver um interesse mútuo.
Durante a revoada de sábado (a festa sem limites do programa), Natalia deu um selinho triplo em Rodrigo e Maria. Momentos após, tentou beijá-lo e foi rejeitada.
Senti a dor de Natália. Rodrigo disse não querer por estar apaixonado por uma pessoa fora da casa, mas não se lembrou disso quando foi logo em seguida, na mesma festa, flertar com Laís.
Eu me lembrei de um trecho da música "Gold Digger", de Kanye West, o rapper negro que protagoniza relacionamentos com mulheres brancas. "Mas você fique bem, garota. E quando você estiver na dele, ele a deixará por uma garota branca". Kanye sabe o que canta, pois sabe o que faz. O amor está reservado para garotas brancas.
Depois do acontecido, Natália chorou e desabafou com Maria e Jade Picon : "Às vezes, tudo que a gente quer é um abraço, principalmente nós, mulheres negras, que somos vistas como fortes. Temos que lidar com muito homem escroto. É gostosa para comer, mas para assumir relação, não".
Essa fala veio mesmo sem saber que um homem vazou criminalmente imagens dela fazendo sexo oral e da repercussão negativa que isto está gerando para a sua imagem fora da casa.
Eu e muitas mulheres negras sabemos exatamente o que Natália está dizendo. Não somos dignas de amor. E como já afirmei no início deste texto, não tenho tanta facilidade para falar do que não tenho vivido.
O amor nunca me foi farto, muito pelo contrário, sempre me foi escasso, e todas as mensagens que a sociedade me passa por meio de filmes, novelas e da vida real é de que não mereço ser amada.
Um momento forte para mim foi quando me aventurei a assistir a um filme do personagem Harry Poter com meu filho. Percebi que a personagem Lavander Brown foi interpretada por atrizes negras nos primeiros filmes, mas quando ela se tornou crush de Ron Weasley no filme "Harry Potter e o Enigma do Príncipe", a atriz que a interpretou era branca. A mensagem foi dada em alto e bom som para todas as garotas jovens que gostam da saga: o amor é para as garotas brancas.
Seja na ficção, no reality show ou na vida real, mulheres negras estão o tempo todo ouvindo que não são merecedoras de amor.
E Natália, mesmo com suas declarações controversas sobre a escravidão e com a pouca idade, pois tem apenas 22 anos, já sabe qual o lugar designado para ela enquanto mulher negra: de joelhos, sendo explorada sexualmente.
Ah, mas o amor não tem cor. As pessoas se apaixonam e não estão preocupadas com a cor deste amor. Desculpa, meu bem, só acredita nessa história vazia de que o amor não tem cor aquele que sempre foi amado por todos.
Não existe uma família negra sequer que não tenha mulheres negras solteiras com mais de 50 anos. Chefes de família negras que conduzem seus lares com seus filhos sem nunca terem sido convidadas ao altar.
Amor é resultado de uma construção social. Nesta sociedade que construímos, mulheres negras são exploradas, e não amadas.
Em 2011, quando era deputado federal pelo PP do Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro associou o relacionamento com mulheres negras à promiscuidade durante uma entrevista no programa "CQC".
Ao ser questionado por Preta Gil sobre o que faria se um de seus filhos se relacionasse com uma mulher negra, Bolsonaro respondeu: "Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco, e meus filhos foram muito bem-educados e não viveram em um ambiente como, lamentavelmente, é o teu."
Natália é eleitora de Bolsonaro, fato que demonstra o quão perfeito foi o plano de destruição da identidade do negro brasileiro. Mesmo reclamando da condição de subalternidade em que vive, apoia e elege seu algoz.
O custo de falas como essa de Bolsonaro é muito caro para as garotas e mulheres negras, as principais vítimas de violência sexual no país. O choro não acolhido da sister diz muito sobre a naturalização desta violência. Em relação à exploração sexual, de acordo com um cálculo realizado pelo Instituto Liberta, 75% das vítimas são meninas. Entre elas, 55,8% têm entre 12 e 14 anos, e 13,6% têm entre 8 e 11 anos. A maioria é de meninas negras.
No que diz respeito aos números da violência com relação a mulheres adultas, assistimos, há anos, a uma crescente vertiginosa de casos contra mulheres negras. Segundo o Atlas da Violência 2018, foram registrados 22.918 casos de estupro no Brasil em 2016. Do total, 34% das vítimas eram brancas, e mais de 54% eram negras (pretas e pardas).
Esse é o retrato da nossa realidade. Afinal de contas, de deputado à presidente Bolsonaro foi chancelado, ovacionado e transformado em mito por esta mesma sociedade que compartilha o vídeo de Natália e brada aos quatro ventos o valor de uma buceta rosa.
Qual o elemento mais atrativo ao lado de um homem em uma foto em que se vê ao fundo sua bela casa, seu carro de luxo e seus filhos? Uma mulher branca. Mesmo que este homem seja negro, ele foi ensinado que mulheres brancas podem significar liberdade.
Esta liberdade tem um custo alto para as mulheres negras. Mas só nós sabemos disso. O restante fica acreditando que o amor é colorido.
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