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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em 'Medida Provisória', governo obriga negros a voltar pra África. Ficção?

Taís Araújo em cena de "Medida Provisória": filme mostra um Brasil que quer sociedade cada vez mais branca - Mariana Vianna/Divulgação
Taís Araújo em cena de "Medida Provisória": filme mostra um Brasil que quer sociedade cada vez mais branca Imagem: Mariana Vianna/Divulgação

Colunista do UOL

20/04/2022 04h00

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Tenho medo de escrever sobre o filme "Medida Provisória" e dar spoilers que possam tirar de você a possibilidade de ser conduzido cena a cena por uma narrativa rica e reveladora, que mescla comédia, terror, melodrama e ação.

O aguardado longa-metragem é o primeiro título dirigido por Lázaro Ramos, com texto do espetáculo "Namíbia, Não!", de Aldri Anunciação, uma das estrelas do filme ao lado de Taís Araújo, Seu Jorge, Alfred Enoch, Renata Sorrah, Emicida e Adriana Esteves. Estreou no último final de semana com salas cheias, críticas positivas e palmas ao final de muitas das sessões exibidas.

A narrativa de "Medida Provisória" sugere um acontecimento futuro. Na trama, o governo brasileiro decreta a medida provisória 1888 para reparar o passado escravocrata do país e obrigar os cidadãos "melanino-acentuados" —assim são chamados os negros na ficção de Ramos— a voltarem para a África.

A volta é inicialmente voluntária, mas diante da baixa adesão de interessados, Isabel (Adriana Esteves) e Santiago (Pablo Sanábio), dois funcionários do governo, são recrutados para promover a limpeza racial brasileira custe o que custar, ainda que sob o assassinato de milhares de pessoas pretas.

O filme é inundado de referências históricas e coloca a população negra em um papel que sempre lhe foi negado nos livros de história que disciplinam nossas crianças nas salas de aula, o de resistente.

"Medida Provisória" não é um filme, é um ato de resistência. É uma reação contra qualquer tentativa de nos privar do direito à vida.

Em meio a uma política de morte em curso no país, conduzida por políticos e partidos de extrema-direita, muitas das cenas parecem uma alusão ao atual governo de Jair Bolsonaro (PL). Mas, vale lembrar, o filme foi escrito entre 2013 e 2015.

As semelhanças ficam por conta do fato de o futuro distópico criado por Lázaro Ramos ser, em muitas cenas, o nosso perverso presente. O Brasil nunca escondeu seu ódio à população preta e o desejo da construção de uma sociedade mais branca.

Desde 1888, as políticas de limpeza racial instauradas no país são inúmeras e vão do encarceramento em massa passando pelo genocídio da população negra, pela imposição de barreiras para a efetiva implantação de políticas afirmativas à exclusão de pretos e pardos dos espaços de tomada de decisão.

A licença para matar negros e pardos está instaurada no país desde 1539, quando os primeiros africanos foram trazidos forçosamente para a costa de Pernambuco. Na atualidade, ela se faz vigente por meio de pacotes anticrime e guerra às drogas. Quando o filme de Ramos se propõe a denunciar o racismo estrutural e a morte indiscriminada de pessoas negras e pardas, ele o faz com autoridade.

Assim como a cantora Elza Soares, Lázaro usa sua voz para dizer o que se tenta calar. Ou "O que se Cala", nome da canção de Elza que envolve a plateia, de maneira emocionante, em um grito cálido e seco: "Mil canções moldam minha cara / Minha voz uso pra dizer o que se cala / O meu país é meu lugar de fala."