Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Sociedade espera que mulheres fiquem caladas, mas isso me deixou doente
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Na última semana não teve texto aqui nesta coluna, não teve roupa lavada, não teve gravação na TV Cultura, onde apresento o programa "Estação Livre", não teve treino, não teve lição com filho, não teve reunião, projeto ou aula no curso de inglês ou no de filosofia. Semana passada teve uma Cristiane o tempo todo de cama com febre alta, dores pelo corpo e um diagnóstico de processo inflamatório bacteriano que atingiu em cheio as minhas amídalas, dois órgãos de defesa contra infecções que ficam no fundo da garganta.
Fui derrubada pelo meu próprio mecanismo de defesa. Temos um problema sério acontecendo neste corpo e precisamos descobrir o que é. Segundo a medicina psicossomática —ramo da medicina que estuda os efeitos de fatores sociais e psicológicos sobre o corpo do indivíduo—, a amigdalite está relacionada ao medo de se expressar. Sentir sua criatividade sufocada em um ambiente onde você é reprimida o tempo todo e sua opinião é sempre alvo de críticas e descaso pode resultar, portanto, em infecção na região.
Esse resultado não é nenhuma surpresa para mim, pois sempre fui impelida a me calar —e com muito mais intensidade quando passei a me posicionar enquanto pensadora feminista e negra. Como disse a escritora americana bell hooks, o silêncio é visto como uma fala correta de feminilidade.
Nossa sociedade espera que mulheres fiquem caladas, que só abram a boca para concordar com seus opressores ou defendê-los, sobretudo quando estamos falando de mulheres negras, completamente desautorizadas discursivamente.
Sempre insisti em ser aquela que foge do correto ao feminino. Quando criança, fui punida por minha mãe, durante anos, após as falas da professora de que eu terminava a lição rapidamente e depois ficava conversando na sala atrapalhando outros colegas. Minha mãe era implacável em seus castigos físicos com cinto, chinelo e colher de madeira.
A surra como instrumento corretor era algo que eu não compreendia naquele momento da minha vida, ainda mais porque eu apanhava mais se insistia em chorar e gritar. Eu apanhava para ficar em silêncio, pois criança não era para ser ouvida.
O silêncio tem sido objeto de estudo de muitas intelectuais negras ao longo dos anos: Alice Walker, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Conceição Evaristo, Audre Lorde, bell hooks. São mulheres dispostas a romper com a máscara do silêncio e a experimentar uma fala desafiadora, determinadas a não se tornarem ainda mais vulneráveis colocando o silêncio como uma arma nas mãos dos meus inimigos, como aprendemos com Audre Lorde.
Foram diversas as vezes que fui constrangida a me calar. Basta você ler, caso tenha equilíbrio emocional e estômago, alguns dos comentários de textos anteriores que escrevo aqui em Universa. Já engoli muitos silêncios que me custaram a dor de inúmeras amigdalites ao longo da minha jornada e cortaram meu canal de comunicação com o mundo.
O silêncio é extremamente nocivo para pessoas negras no Brasil. O silêncio ensurdecedor que insiste em transformar o Brasil em uma democracia racial é o indicador de uma sociedade acostumada a ver corpos de pessoas negras estendidos no chão e a ter como normal que crianças das favelas sejam alvejadas na porta da escola. Este silêncio transformou os negros em ameaças para justificar suas mortes violentas como necessárias para salvar a vida dos ditos "cidadãos de bem".
Romper com os silêncios que apregoam nossas amígdalas não é fácil. Quem ousa pode ser aniquilado, silenciado. Mas eu quero ouvir minha própria voz no debate público desafiando políticas de dominação que insistem em nos manter mudos.
Do silêncio estão se alimentando gestores públicos, lideranças municipais, estaduais e federais e instituições que devem garantir o direito à vida como o Ministério Público, instituição com a responsabilidade de fiscalizar o poder público em várias esferas, mas que insiste em se manter em repouso diante do genocídio da juventude negra e pobre no Brasil.
Quero viver em um país onde o silêncio seja destroçado por quem realmente deve nos proteger e não por rajadas de balas intermináveis nas madrugadas das favelas do Rio de Janeiro. Quero viver em um país sem ter medo que meu filho saia à rua e encontre um agente público de segurança —porque isso, infelizmente, pode lhe custar a vida.
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