Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Violência contra mulheres, crianças e ativistas avança na Amazônia há anos
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O povo Xingu e a sua sabedoria ancestral chama a brabeza do rio de banzeiro. O rio agitado, sem controle, capaz de engolir quem se atreve atravessá-lo. A jornalista Eliane Brum o descreve em seu livro, "Banzeiro Ókòtó" (ed. Companhia das Letras) como um "lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar. Quem rema espera o banzeiro recolher suas garras ou amainar. E silencia porque o barco pode ser virado ou puxado para baixo de repente."
Ouso aqui empregar a palavra sem sinônimos para escrever que a Amazônia inteira está sendo engolida num imenso banzeiro provocado pelo homem. Se contorcendo com o mercúrio que os garimpeiros jogam no rio em busca de ouro, despencando sua vitalidade a cada árvore que tomba no chão sob o gritar da motoserra, presa nas redes da pesca predatória, sob os tiros de fuzis do crime organizado que domina, alicia, estupra e mata.
No encalço das desgraças que rondam as mais de 350 comunidades indígenas da região, se solidifica o temor implantado por garimpeiros, madeireiros e toda a sorte de criminosos que estão aliciando mulheres e adolescentes indígenas em troca de comida, embebedando, estuprando e levando vítimas à morte.
As denúncias foram feitas pelos yanomamis aos pesquisadores indígenas e antropólogos que as reuniram no relatório lançado em abril deste ano pela Hutukara Associação Yanomami. Alguns dos crimes ocorreram em 2020, mas vieram à tona quase dois anos depois por terem acontecido em aldeias afastadas como a comunidade Apiaú e Kanayaú. Moradores das duas aldeias relatam a mesma abordagem dos garimpeiros, oferecem álcool e drogas para os índios e, quando todos entorpecem, estupram adolescentes e crianças.
Em maio deste ano, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Yékwana, Júnior Hekurari, denunciou o estupro e assassinato de uma menina yanomami de 12 anos por garimpeiros na região de Waikás, em Roraima. A situação de abandono a que os povos originários mais afastados estão submetidos os deixa à mercê de toda a corja de criminosos. Sem peixes no rio em razão da contaminação do mercúrio, com a caça escassa em virtude do desmatamento e muito debilitados por doenças, os jovens são obrigados a trabalhar para os garimpeiros, e mulheres e crianças são aliciadas sexualmente em troca de pequenas quantidades de comida, muitas vezes estragada.
Entre motosserras e fuzis não há espaço para flechas. A guerra pela terra sempre teve um saldo nocivo para os povos originários devido a desproporção de força. Palavras como garimpo, desmatamento, extinção e extermínio se tornaram comuns no cotidiano dos povos das florestas desde que Pedro Álvares Cabral começou a destruir o Brasil. Na região Amazônica, o saldo de degradação intensivo se iniciou com força nos anos 1970, há pouco menos de 50 anos, com o governo militar que, sob o slogan "integrar para não entregar" e com incentivos para aos grandes latifundiários tocassem suas boiadas para o que os próprios militares chamavam de maior pasto do mundo.
Militares e toques de boiadas voltaram a ser protagonistas a partir de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro (PL) para presidente. Não ter acertado nossas contas com os militares ao final do período sangrento da ditadura nos custou a maléfica volta destes ao poder. "Quando você não acerta suas contas com a história, a história te assombra", afirmou recentemente o filósofo Vladimir Safatle, ao fazer uma analogia direta entre o sucesso de Bolsonaro nas urnas e a ditadura "que não terminou".
O cenário está criado e, em muitos aspectos, vemos uma repetição deste período ingrato de nossa história. Assim como o governo militar proeminente com o golpe de 1964, Bolsonaro não demarcou um centímetro sequer de terras indígenas, vem defendendo a legalização do garimpo predatório na região, promovendo o desaparelhamento de órgãos do Estado que atuam na defesa e proteção dos povos indígenas, como a Funai, e a própria extinção do Ministério do Meio Ambiente.
Enquanto a boiada avança, o Estado recua. Durante os dois anos de pandemia, o Estado se encolheu, e o poder violento avançou. Enquanto todas as entidades fizeram isolamento, garimpeiros e madeireiros derrubaram a floresta e assassinaram índios e indigenistas.
Quem ousa se contrapor ao poder paralelo estabelecido é brutalmente assassinado. Desde o dia 5 de junho, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips estão desaparecidos na região do Vale do Javari, onde são comuns invasões de terra por garimpeiro e madeireiros. Os pertences dos dois foram encontrados no rio onde foram vistos pela última vez. Bruno havia recebido diversas ameaças de morte e acompanhava o jornalista que há mais de 15 anos atuava como correspondente internacional na região Norte brasileira.
Bruno é uma pessoa chave na defesa dos direitos dos povos originários e da biodiversidade amazônica que agoniza no centro do banzeiro sob nosso olhar apático.
Em março, deste ano completaram-se 17 anos do assassinato brutal da ativista dos direitos pela terra e missionária católica Dorothy Stang no município de Anapu, no Pará. De lá para cá, mais de 550 pessoas foram assassinadas em conflitos de terra no estado, e menos de 5% dos crimes foram levados a julgamento, segundo a Comissão Pastoral da Terra.
O fim da Amazônia e a extinção dos povos originários está próximo. O colapso ecológico em curso está atingindo níveis irreversíveis. O homem branco transformou a Amazônia em um banzeiro que se estende por todo o território. Lugar de perigo de onde se vem até onde se quer chegar e não há como esperar o banzeiro amainar. Quem estiver no território será engolido, devorado, exterminado. Infelizmente.
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