Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Cuidado doméstico não é amor, é trabalho não remunerado
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Quem faz o trabalho doméstico necessário para a sua existência? Você tem uma trabalhadora doméstica? É sua mãe, seu companheiro, outra pessoa da sua família ou é você? Na sua casa, se você não mora sozinha, como é feita essa divisão? Ela é dividida igualmente entre os moradores ou uma das figuras femininas acaba assumindo a maior parte das tarefas?
Uma pesquisa do final de 2022 da Companhia de Desenvolvimento do Distrito Federal (Codeplan) apontou que as mulheres dedicam até 10 horas semanais a mais que os homens em trabalhos domésticos e cuidados não-remunerados com dependentes, como crianças, idosos e pessoas com deficiência.
Eu não fui entrevistada pela pesquisa, mas ela descreve exatamente o cenário em que vivo. Hoje fiquei muito nervosa. Perdi a elegância, falei alto com meu filho que está numa fase da vida em que se comporta como se fosse um hóspede dentro da própria casa. Se o que temos em casa são pessoas que agem como visitas e não como moradores comprometidos, a conta das horas do trabalho doméstico não fecha. Alguém faz quase tudo e, na imensa maioria das vezes, esse alguém é uma mulher sobrecarregada que não só trabalha para pagar as contas e comprar comida como também cozinha, limpa, educa e cuida.
Saber que eu sou a única pessoa realmente envolvida com o trabalho doméstico da minha casa me deixa com raiva, pois o exercício deste trabalho me cansa física e mentalmente. Convivo com dois homens, meu filho de 18 anos e meu irmão de 39, que é uma pessoa com deficiência intelectual. São duas tarefas não remuneradas que recaem e pesam sem dó sobre minhas costas e que aprendi a executá-las antes mesmo de aprender a ler, a do cuidado e a doméstica.
Só hoje, eu já lavei roupa, varri casa, lavei louça, cuidei das medicações do meu irmão, o levei na academia, participei de duas reuniões de pauta, fiz uma pesquisa sobre os temas dos programas que apresento, paguei as contas da casa, administrei os gastos do mês e estou no meio deste texto, minha coluna semanal em Universa. Só de falar eu já me sinto cansada, mas ainda nem terminei. São pouco mais de 20h, ainda vou finalizar o jantar nos próximos minutos e acabei de pedir mais prazo para um outro texto que eu deveria ter entregue hoje.
Falo tudo isso ciente de que sou uma mulher permeada de vantagens. Recebo uma remuneração mensal maior do que a grande maioria dos brasileiros e isso me permite terceirizar parte do meu trabalho doméstico, mas não me isenta de estabelecer uma nova relação frágil de trabalho com outra mulher. E também não me permite simplesmente aceitar que esta seja uma obrigação das mulheres como vejo propagado por aí. O homem não fica brocha se lava a louça que ele sujou, não perde a masculinidade se limpa o banheiro que ele usou. O trabalho doméstico não remunerado revela uma realidade mais que visível da desigualdade, só não enxerga quem não quer.
Para as mulheres negras a conta é mais pesada, são as que sempre estiveram no mercado de trabalho, mesmo quando o feminismo foi reivindicar espaço para as mulheres no mundo corporativo. Essa reivindicação só foi possível porque as mulheres negras estavam cuidando dos filhos e limpando as casas dessas mulheres por salários muito baixos e submetidas a relações de trabalho até hoje muito precarizadas e desrespeitadas.
Silvia Federici, autora de livros importantes para entendermos como se articulam as estratégias de controle dos corpos femininos no universo capitalista, tem uma frase perfeita para essa nossa conversa. Numa entrevista para a jornalista Úrsula Passos em 2019 ela disse: "O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago". Desde os anos 70, Federici defende que as tarefas realizadas dentro de casa deveriam ser remuneradas. Embora sejam representadas como sendo amor, carinho ou cuidado, são elas que sustentam o desenvolvimento do capitalismo. Do escravismo ao trabalho doméstico não remunerado, a exploração sempre sustentou o lucro do capitalismo.
Não vejo a solução na remuneração desse trabalho, embora a reivindicação de Frederici seja mais que válida, principalmente quando penso na quantidade de mulheres negras e periféricas que dedicaram suas vidas ao cuidado de afazeres domésticos e sequer conseguem se aposentar ao final de suas jornadas e se tornam vítimas do sistema capitalista habilidoso em moer mulheres. Mas acredito em algo mais acessível, nos homens fazendo a parte que é deles no trabalho reprodutivo.
E tem que fazer sem glorificação, homem trabalhando dentro de casa não está fazendo mais do que sua obrigação. Está cumprindo o seu papel enquanto ser humano consciente das divisões de tarefas.
Por isso que estou sofrendo aqui com meu filho na tentativa de criar um homem que se responsabilize hoje e amanhã.
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