Topo

Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Elas e a floresta eram virgens: a lei Maria da Penha não chega à Amazônia

Colunista de Universa

09/08/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Foi com a jornalista Eliane Brum que iniciei os meus primeiros entendimentos sobre o fato de a Amazônia ser uma mulher. Lendo seu livro "Banzeiro Ókótó, uma viagem ao centro do mundo", eu pude, junto com ela, refletir sobre o fascínio que o homem tem pela virgindade da mata e pela virgindade do corpo feminino.

O romper a floresta nunca antes tocada é tão invasivo e devastador quanto o romper do hímen que nos envolve e, no caso de muitas mulheres, o rompimento dá ao homem o controle sobre o seu corpo, sobre o seu destino. Como diz Eliane, a palavra virgem, tanto na Amazônia quanto no corpo feminino, está ligada à destruição e, nos últimos dias, conheci muitas histórias de mulheres que tiveram suas vidas devastadas assim como a mata.

Acabo de voltar da minha primeira viagem à Amazônia, e meu destino foi Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima, municípios do Acre, estado brasileiro com um dos maiores índices de feminicídios do país. Foram alguns dias convivendo dentro da comunidade indígena Puyanawa, a 200 km da fronteira com o Peru, e mais alguns conhecendo regiões do entorno. Quanto mais perto do Peru, mais longe dos olhos da Justiça brasileira. Se a Amazônia agoniza no Acre, as mulheres também.

A mulher da floresta grita e os ecos se perdem em meio à fumaça da mata queimada. A mulher da floresta está agonizando como cada árvore cortada, como cada ser da mata extinto. Das meninas indígenas grávidas aos 10, 11 anos até a submissão escancarada nos gestos ou no sorriso cálido das mulheres indígenas que conheci.

Na floresta, a lei Maria da Penha não chega. As mulheres são vítimas de violência doméstica e vítimas da violência de grileiros, traficantes e toda a sorte de exploradores das regiões amazônicas. Crimes quase sempre marcados pela impunidade, uma vez que as mulheres indígenas enfrentam barreiras culturais, linguísticas e institucionais para buscar justiça.

Na conversa que tive na comunidade, foram poucas as mulheres que se encorajaram a falar das violências sofridas, mas ali em meio as samaúmas, uma das árvores mais importantes do bioma amazônico, eu conheci Silvia, uma mulher que encontrou na floresta o colo que lhe acolheu sem julgamento de todas as violências vividas.

Quando Silvia me recebeu, me abraçou como se fossemos amigas há muitos anos, me olhou com seus olhos caídos e me saudou com seu sotaque peruano. Ela mora à beira do Rio Crôa, principal fonte de renda de quem vive na região. Ali, às margens do rio, construiu uma história de liderança e conquista, mas por detrás do sorriso tímido existe uma mulher que foi violada e que fez da sua dor uma luta, escolheu lutar pela não violação da floresta amazônica.

A violência sofrida pelas mulheres indígenas na Amazônia é uma questão preocupante e complexa, envolve uma interseção de fatores sociais, culturais, econômicos e políticos. Essas mulheres enfrentam uma série de desafios únicos que têm um impacto profundo em suas vidas e comunidades, pois ali nestes territórios estas mulheres são líderes, desempenham papéis essenciais na preservação de suas culturas, conhecimentos tradicionais e no manejo sustentável dos recursos naturais. No entanto, muitas vezes, são excluídas dos processos de tomada de decisão que afetam suas próprias terras e vidas.

A violência contra essas mulheres não apenas prejudica diretamente a elas, mas também enfraquece as comunidades originárias como um todo. Cada mulher violada, cada árvore derrubada, cada recurso da floresta extraído em nome do desenvolvimento custa caro para toda a humanidade.

Proteger as mulheres indígenas da violência exige um compromisso contínuo e a colaboração de múltiplos setores da sociedade. É fundamental ouvir e envolver as próprias em todos os estágios do planejamento e implementação das estratégias de proteção, respeitando suas perspectivas e necessidades específicas.

Combater a violência contra as mulheres da floresta exige abordar questões de discriminação de gênero, direitos territoriais, desenvolvimento sustentável e respeito às culturas dos povos originários. Somente por meio de esforços coordenados e comprometidos será possível criar um ambiente mais seguro e justo para as mulheres indígenas na Amazônia, assim como Silvia conseguiu criar para a samaúma que ela chama de mãe. A árvore de mais de 250 anos reina imponente no quintal com seus quase 50 metros de altura. Ali, na base de suas imensas raízes, Silvia encontra abrigo, amor e proteção para ser mulher amazônica.