Anitta fala de abuso e mostra que culpa é do agressor mas fardo é da vítima
Anitta, uma das vozes mais influentes da música pop mundial, decidiu quebrar o silêncio sobre um trauma que carrega desde a adolescência. Durante o documentário 'A Great Day with J Balvin', ela revelou mais detalhes de uma experiência devastadora: aos 14 anos, foi estuprada por alguém que conhecia. A revelação trouxe à tona um tema universal e doloroso para milhares de mulheres: a culpabilização da vítima.
Esse não foi o único momento em que Anitta abordou o abuso. No documentário 'Anitta: Made in Honório' (2020), ela falou publicamente pela primeira vez. Na época do abuso, ela não contou a ninguém. Guardou para si a dor, a confusão e, principalmente, um sentimento devastador de uma culpa que nunca foi dela, mas que a sociedade lhe impôs silenciosamente.
Quando uma mulher sofre abuso sexual, o primeiro instinto da sociedade, muitas vezes, não é o de acolhê-la ou protegê-la. O primeiro olhar é de julgamento.
"O que ela fez para provocar?", "Por que estava ali?", "Será que suas roupas ou comportamento sugeriram algo?". Essas perguntas insidiosas são plantadas nas mentes das vítimas, como se o ato brutal que sofreram tivesse sido causado por suas próprias ações. Esse é o reflexo de uma sociedade que, por gerações, condicionou as mulheres a acreditarem que suas escolhas e aparências são responsáveis pelos atos de violência contra elas.
Quantas meninas, como Anitta, carregam essa culpa que não é sua? Elas se perguntam repetidamente se poderiam ter evitado o abuso, se o erro foi delas. Mas não há erro. Não há culpa. A responsabilidade pelo abuso é sempre do agressor, mas o fardo da culpa é empurrado para a mulher, transformando a vítima em prisioneira de seu próprio trauma.
Desde cedo, as mulheres são educadas a se protegerem, a evitarem comportamentos "provocativos", a estarem atentas ao perigo. Mas pouco se fala sobre a responsabilidade dos homens. O peso do comportamento masculino raramente é discutido. Em vez disso, a mulher é responsabilizada como se pudesse controlar a violência que lhe foi imposta. A cultura da culpabilização é uma das facetas mais cruéis do machismo estrutural por perpetuar a desigualdade de gênero e criar um ciclo que protege o abusador e aprisiona a vítima em vergonha e silêncio.
Quando figuras públicas vítimas de abuso sexual como Anitta, Lady Gaga ou Demi Lovato falam sobre suas experiências, estão fazendo mais do que compartilhar suas dores. Elas estão expondo uma realidade que a sociedade prefere ignorar: a de que o abuso sexual não apenas fere o corpo, mas também mutila a autoestima.
O silêncio é uma das armas mais eficazes dos abusadores, e é alimentado pela culpa. A mulher que se culpa pelo que aconteceu com ela é a mulher que não fala. E é exatamente isso que o abusador quer: silêncio. Quando Anitta contou sua história, ela revelou algo muito maior: o poder que o silêncio tem nas mãos do agressor. Ao não falar sobre o abuso, a vítima mantém a violência em segredo, protegendo involuntariamente o abusador.
Esse silêncio sufocante é, muitas vezes, imposto por uma manipulação emocional tão profunda que a vítima se sente incapaz de reagir ou pedir ajuda. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, 58% dos casos de exploração sexual infantil no Brasil envolvem meninas de até 14 anos, e 85% dos agressores são conhecidos das vítimas. Na maioria das vezes, esses crimes ocorrem dentro de casa, o lugar que deveria ser de segurança e proteção, mas que, para muitas meninas, se torna o epicentro de sua dor e culpa.
Anitta nos mostra que há poder na palavra, no acolhimento e na solidariedade. O silêncio que antes era uma arma nas mãos do agressor perde seu poder quando a vítima se liberta da culpa e decide usar sua voz para denunciar, mas para que o abuso sexual deixe de ser uma realidade, não podemos continuar colocando o peso da mudança nas vítimas.
A transformação precisa ser coletiva e estrutural. Devemos começar pela educação, ensinando desde cedo o respeito ao corpo do outro, combatendo a objetificação e promovendo a igualdade de gênero em todos os espaços. As instituições, a mídia, as empresas e o sistema de justiça precisam assumir suas responsabilidades em erradicar a cultura do abuso e da culpabilização. A mudança deve vir de uma sociedade que se recusa a tolerar a violência, que protege as mulheres e pune os agressores. É hora de transferir o fardo para quem sempre deveria ter carregado: os abusadores e os sistemas que os protegem.
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