Cris Guterres

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Opinião

Ainda estamos aqui: o que indiciamento de Bolsonaro tem a ver com o filme

Um país que não acerta as contas com seu passado está condenado a reviver seus erros no presente. É o que nos ensina, dolorosamente, a história do Brasil.

Hoje, os dois assuntos mais discutidos no país, o indiciamento de Jair Bolsonaro e aliados por tentativa de golpe e trama de assassinato e a estreia do filme "Ainda Estou Aqui", sobre a ditadura militar, têm como pano de fundo a presença e o papel das Forças Armadas na história do país.

Essa coincidência evidencia como o país ainda carrega os fantasmas do autoritarismo, nunca devidamente enfrentados. O golpe de 1964 deixou marcas profundas: perseguições, torturas e desaparecimentos, como o caso de Rubens Paiva, cuja prisão e morte nas mãos de agentes da ditadura permanecem uma ferida aberta que foi muito bem contada no filme que vem acumulando prestígio e levando milhares de pessoas ao cinema. Décadas se passaram, mas a transição democrática brasileira escolheu o caminho da anistia ampla e irrestrita, silenciando vozes que clamavam por verdade e justiça.

Os militares saíram ilesos, documentos foram ocultados, culpados nunca foram julgados, e as Forças Armadas não passaram por nenhuma reforma estrutural. Assim, a ditadura não se tornou apenas um capítulo encerrado, mas um legado que segue influenciando a política e a sociedade.

Hoje, as consequências dessa omissão se manifestam de forma assustadora. Segundo as investigações, a tentativa de Bolsonaro e aliados de impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva envolveu a estruturação de um plano para assassinar opositores e criar o caos necessário para justificar uma intervenção militar.

As vítimas desse plano seriam o próprio presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva; o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin; e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Esse não foi um ato isolado, mas parte de uma articulação que contou com o apoio de militares de alta patente, alguns dos quais estavam no centro do poder político até recentemente. Generais, almirantes e outros oficiais, supostos guardiões da democracia, aparecem como protagonistas de um esquema que desrespeitou o voto popular e tentou subverter a ordem constitucional.

O fato de que o Brasil esteja discutindo simultaneamente um filme sobre o desaparecimentos durante a ditadura e a tentativa de um golpe na contemporaneidade é uma prova dolorosa de que nosso passado não foi resolvido. A memória do autoritarismo segue presente não apenas nos arquivos não abertos, mas na mentalidade de setores que ainda se veem acima da vontade popular e das leis.

De novo, um golpe. De novo, os militares. Essa repetição não é apenas um sintoma de fragilidade política, mas a evidência de que o Brasil precisa, urgentemente, enfrentar sua história. E dessa vez, não há espaço para outra anistia. O caminho da impunidade, escolhido em 1979, abriu precedentes perigosos e permitiu que golpistas acreditassem que o Estado de Direito é negociável. É preciso deixar claro: não existe acordo com quem atenta contra a democracia. A tentativa de golpe é um crime contra o país, e seus responsáveis, sejam políticos, militares ou empresários, devem ser responsabilizados.

Justiça e memória não são opções: são o único caminho para garantir que a democracia prevaleça. O título do filme "Ainda Estou Aqui", poderia muito bem servir como uma metáfora para o Brasil atual. O fantasma de 1964 não foi exorcizado, ao contrário, ele se manifesta na política, nas instituições e nos discursos que questionam o próprio fundamento democrático. Infelizmente, eles ainda estão aqui matando muita gente, só durante a pandemia foram mais de 700 mil vidas que eles trancaram no porão fétido da negligência, do negacionismo e do descaso com a saúde pública.

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O filme "Eu ainda estou aqui" acaba de ser anunciado como concorrente de melhor filme estrangero no Oscar de 2025. E mesmo que a estatueta venha para reconhecer a grandeza do cinema e da cultura nacional, ainda estamos em débito com centenas de famílias que não puderam enterrar seus filhos, maridos, pais, amigos. Vítimas de um regime que até hoje não foi completamente responsabilizado. Enquanto a justiça não chegar para essas famílias, o Brasil continuará a carregar essa que é mais uma dívida histórica, que impede o país de avançar plenamente como uma nação democrática.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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