Cristina Fibe

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Opinião

'Angela' escolhe caminho perigoso contra o feminicídio: o da sensualidade

Em agosto, o Supremo Tribunal Federal proibiu o uso da tese da legítima defesa da honra para defender assassinos de mulheres. Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia afirmou que, mais do que uma questão jurídica, essa é uma questão de humanidade.

Cármen disse que nós mulheres continuamos a ser tratadas como objeto e submetidas ao poder dos homens, inclusive para a destruição. É por isso que, em 2023, é preciso discutir o feminicídio e vetar, na mais alta Corte do país, que se levante a possibilidade de que uma mulher fez qualquer coisa para merecer a própria morte.

Essa inversão de papéis, com a condenação da vítima e a vitimização do réu, é parte da realidade brasileira atual, "uma sociedade machista, sexista, misógina e que mata mulheres apenas porque elas querem ser o que elas são: mulheres donas de suas vidas", afirmou Cármen Lúcia.

Para a ministra Rosa Weber, já "não há espaço para a restauração dos costumes medievais e desumanos do passado pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso em defesa da ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina pela qual se legitima a eliminação da vida de mulheres".

Rosa Weber está prestes a deixar a Corte. E este mesmo Brasil de 2023 cogita reduzir o número de juízas mulheres no STF. Em poucas semanas, pode ser que Cármen Lúcia esteja sozinha num tribunal de 11 ministros. Num país que humilha mulheres nos tribunais. E no qual a tese da legítima defesa da honra resiste no imaginário popular.

No fim de semana, fui com a minha amiga Maria Ribeiro assistir ao filme "Angela", sobre o mais famoso caso de feminicídio do país, ocorrido em 1976. Na semana passada, Maria escreveu aqui em Universa sobre independência e maternidade. E comentou: Angela Diniz era mãe, e não foi só ela que morreu com aqueles tiros.

Maria e eu também somos, e sabemos que a história de uma mãe que perde a guarda de seus três filhos não pode virar nota de rodapé. Mas esse é um dos erros do filme, dirigido por um homem.

O longa escolhe um caminho perigoso para uma obra que se pretende ser uma bandeira contra o feminicídio: o caminho da sensualidade.

A Angela que conhecemos ali, interpretada por Isis Valverde, é uma mulher provocadora, sexy, protagonista de cenas tórridas de paixão, que faz Raul Fernando do Amaral Street perder a cabeça. Vez ou outra aparece ali a mulher que chora a perda de seus filhos, sobre os quais não conhecemos nada.

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Quem foi Angela para além da "pantera de Minas"? Pelo filme, não dá pra saber. Quantas mulheres já tinham sido ameaças ou espancadas por Raul (Doca) Street? O que, no assassino, explica aquele crime? O filme não deixa pistas.

Ainda que o seu objetivo não seja condenar a vítima, "Angela" não consegue avançar o debate pra além da ideia superficial e errada da paixão capaz de provocar uma morte trágica.

Não é a paixão ou a sensualidade da mulher que a leva a ser assassinada com tiros na cara. Violência não tem nada a ver com amor. O que leva um homem a matar sua companheira — e Angela Diniz, infelizmente, é uma de milhares de vítimas de feminicídio no Brasil — é a ideia de que ele a possui, como um objeto não merecedor dos mesmos direitos.

O homem que estupra e mata mulheres o faz para afirmar a sua dominação e o seu poder. Não por prazer, muito menos por amor. Mas essa ideia, infelizmente, persiste no imaginário popular. E em produtos culturais presos a um tempo que já passou.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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