Cristina Fibe

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Opinião

Posso ser estuprada por alguém que conheci num app? Para a Justiça, depende

Você pode ser estuprada por alguém que conheceu no Tinder? Eu sei a resposta, você também. Mas a Justiça não tem certeza.

Numa reportagem publicada nesta semana em Universa, a repórter Camila Brandalise relata os bastidores dos julgamentos que absolveram um réu contra quem 12 mulheres registraram queixa por violência sexual.

Em dois dos cinco casos que não prescreveram, ele foi considerado inocente. Em ambos, as vítimas o conheceram pelo aplicativo.

No livro "Amanhã o Sexo Será bom Novamente" (Bazar do Tempo), a pesquisadora britânica Katherine Angel afirma que "evidências de que uma mulher já utilizou aplicativos de relacionamento como Tinder para encontrar parceiros sexuais podem se voltar contra ela no tribunal".

A predisposição pro sexo casual, para alguns juízes, invalida a possibilidade de uma mulher ser estuprada. Procurou um parceiro de aventura? Entrou na casa dele ou o recebeu na sua? É como se, a partir desse ponto, o seu consentimento valesse para tudo — e fosse irrevogável.

O livro conta um caso que aconteceu na Irlanda, em 2018. Uma advogada levou a calcinha da vítima ao tribunal e argumentou: "É preciso olhar para a forma como estava vestida. Ela estava usando uma calcinha fio-dental com frente de renda".

Como se isso fosse um "sim".

Na Irlanda, como no Brasil, esse raciocínio ainda é aplicado nos tribunais, apesar da obrigatoriedade de orientar os julgamentos sob a perspectiva de gênero, levando em conta as imensas desigualdades que persistem no país.

A reportagem de Camila Brandalise mostra que o juiz do caso brasileiro perguntou a uma das vítimas se ela não achava normal ser tocada dormindo. Perguntou que trajes usava quando passava a noite na casa do réu. "De calça jeans, só de calcinha, nua, com pijama?"

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Que diferença faz, Excelência? Com todo respeito: posso dormir nua, e tenho o direito de ser tocada apenas por quem eu quiser, quando eu quiser. Ir ao encontro de um potencial parceiro não significa que eu dê a ele o direito de fazer qualquer coisa com o meu corpo.

Mas, para os magistrados, não há estupro caso a vítima não mostre reação física "séria, efetiva" e com "rebeldia".

Pelo Código Penal brasileiro, o estupro é o ato libidinoso ou conjunção carnal que acontece mediante violência ou grave ameaça. Só que o grau de violência ou ameaça depende da interpretação de cada um.

A vítima achou que o "não" fosse suficiente. E ela tinha razão. O que ultrapassa a barreira do "não" é crime. Mesmo se esse "não" for trêmulo, apavorado, envergonhado — e sem rebeldia. Qualquer não é não.

O que me incomoda é que os homens sabem disso, sabem quando cometem uma violência. Esse discurso de "a gente nem sabe mais como se comportar com uma mulher" é leviano, e em geral vem de abusadores.

Mas isso tudo precisa ficar mais claro na lei. Num país onde todos os tribunais de Justiça estaduais têm maioria masculina, como a gente pode contar com a interpretação individual dos crimes sexuais?

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Afinal, o que a Justiça considera consentimento livre? Que violência ou grave ameaça precisa existir para que o meu "não" seja validado pelo juiz?

Que esperança temos de avançar nessa discussão se a mais alta Corte do país tiver apenas uma mulher? Diversidade de gênero e raça no Supremo Tribunal Federal importa, sim. O presidente Lula pode não estar angustiado pra resolver isso. Mas nós mulheres estamos.

Retrocessos como esse têm nos custado caro demais. O preço é a nossa integridade, a nossa dignidade — e, às vezes, a nossa vida.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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