Abuso infantil: por que é importante falar mais (e ouvir) sobre esse crime
Neste texto, trato de um dos temas que eu, como jornalista, mulher e mãe, tenho mais dificuldade em abordar. Digo isso como forma de alerta: o assunto pode gerar angústia e sofrimento na leitora e no leitor.
Desde que comecei a cobrir crimes sexuais, há cinco anos, passei a ouvir histórias de pessoas, desconhecidas ou amigas de muito tempo, que sofreram abuso na infância e permaneceram caladas por décadas. Mulheres e homens que guardaram em segredo as violências de que foram vítimas, por vergonha, medo e culpa — por mais absurdo que possa parecer o uso dessa palavra nesse contexto.
"É uma mistura de sentimentos enlouquecedora", como define a artista visual Elisa Bracher, de 58 anos. Abusada dos 11 aos 14 por um segurança da casa onde morava com a família, só em 2022 decidiu tornar público o seu trauma.
Num relato corajoso, Elisa conta que o ato da violência acompanha a vítima por muitos anos: "Desmonta o corpo, como se te desmembrasse, como se as partes ficassem todas soltas". Depois do estupro, ela diz, "um tantão de você morre".
"Eu não conseguia falar disso nem pra mim mesma. Se acontecer, ela (a criança) tem que poder falar. E, pra poder falar, ela não pode se sentir sozinha."
Para amplificar a palavra de vítimas de abuso infantil, Elisa criou um canal no YouTube chamado "Infâncias despedaçadas". O projeto lança agora entrevistas com especialistas, que apontam caminhos para os cuidados com as crianças. Para Elisa, "é um pouco absurdo a gente ficar confortável num país em que tantas delas são estupradas".
Outra ação, presencial, incentiva o fim do silenciamento que cerca esses crimes. Neste sábado (21), a Flup (Festa Literária das Periferias) promove o Dia da Escuta, a partir das 10h, no Morro da Providência, no Rio de Janeiro.
Criada no ano passado pela jornalista francesa Audrey Pulvar, filha de um homem acusado de abuso, a iniciativa pretende treinar os ouvidos de quem por vezes recebe as denúncias e não sabe como ajudar.
A ideia é que esse tipo de grupo de apoio possa ser reproduzido em outras comunidades, bairros, cidades — o que parece fundamental num país como o Brasil, que falha em proteger vítimas de estupro, mesmo quando elas conseguem pedir socorro.
Um caso denunciado pela repórter Marcela Guimarães na revista "Piauí", na semana passada, ilustra a falência completa do Estado na garantia dos direitos da infância. Um menino de seis anos, com sinais de abuso sexual registrados em laudos médicos, está sendo mantido sob a guarda exclusiva de seu pai, acusado pelo crime, por decisão da Justiça do Ceará.
O garoto foi afastado da mãe depois que ela procurou as autoridades para denunciar o ex-marido, um coronel aposentado da Polícia Militar. Embora seja réu sob suspeita de violentar sexualmente o menino, o pai já está há mais de três meses com a guarda unilateral. A "Piauí" conta que ele já havia sido acusado pelo mesmo crime contra os dois filhos mais velhos, de outro relacionamento.
Depois da publicação da reportagem, a Corregedoria Nacional de Justiça instaurou pedido para apuração de suspeita de irregularidade no processo. Segundo o órgão, há indícios de favorecimento ao pai, que além de PM aposentado tem "vários parentes que trabalham no Poder Judiciário".
Enquanto isso, o menino de 6 anos pode estar sendo abusado diariamente por seu genitor, sem nem poder se comunicar com a mãe. Um crime hediondo, cometido com a ajuda e a conivência do Estado brasileiro.
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