No Rio e em Gaza, masculinidade bélica deixa feridas invisíveis em mulheres
As disputas entre as milícias no Rio de Janeiro, dominadas por homens com apelidos que remetem a ficção científica, animais selvagens e virilidade, me fazem lembrar de uma declaração do especialista no tema Bruno Paes Manso.
No primeiro episódio do podcast "A República das Milícias", o jornalista conta ter entendido que o seu objeto de investigação não era exatamente a violência, mas sim "o poder e a masculinidade". "A violência é só instrumento."
Para ele, as milícias operam sob "uma ética masculina e violenta, que impõe autoridade de um jeito tirânico, definindo o que pode e o que não pode".
O que pode, o que não pode, quem vive e quem morre.
Essa lógica da "masculinidade bélica" não se restringe às milícias: está presente, também, no tráfico e nas polícias. Essa tese é defendida pela pesquisadora e analista política Kristina Hinz, que publicou um artigo sobre o assunto na plataforma Open Democracy, em 2022.
No texto, Hinz defende que a segurança pública do Rio é norteada por uma lógica masculina militar, em que prevalecem a eliminação do inimigo e a conquista de território. Da população, ela afirma, é exigida tolerância para ações autoritárias que desrespeitam os direitos humanos.
"No enfrentamento entre as forças de segurança e o crime, mulheres também são vítimas frequentes e submetidas a formas específicas de violência policial. Casos de assédio, extorsão, estupro e tortura praticados por policiais contra mulheres têm sido reportados, mas raramente analisados e postos em debate", escreve a pesquisadora.
Para ela, na luta de homens contra homens, "são as mulheres que carregam as feridas invisíveis de uma política pública fracassada".
Invisíveis e silenciadas, elas pagam um preço alto pela lógica bélica masculina, tanto na guerra fluminense quanto nas guerras internacionais.
Em Gaza, mais de mil mulheres e duas mil crianças foram mortas desde o início do conflito entre Israel e o Hamas. Meio milhão de mulheres e meninas tiveram de deixar suas casas, e cerca de 900 viúvas passaram a chefiar seus lares. Outras 50 mil mulheres estão grávidas e sem o devido acesso a saúde; mais de 150 partos inseguros estão acontecendo a cada dia.
Os dados foram levantados até o início desta semana pela ONU Mulheres, que analisou o impacto da crise no Oriente Médio sob a perspectiva de gênero. A organização conclui que a região tem riscos elevados de violência contra a mulher e trauma psicológico; de exploração sexual e de trabalho, tráfico de pessoas e casamentos forçados; e negligência e violência contra mulheres mais velhas, em particular as que têm deficiência.
Num dos poucos livros que registram uma guerra do ponto de vista feminino, a ucraniana Svetlana Aleksiévitch conta que, quando as mulheres falam do confronto, "não aparece nunca, ou quase nunca, aquilo que estamos acostumados a ler e escutar: como umas pessoas heroicamente mataram outras e venceram. Ou perderam".
Em "A Guerra Não Tem Rosto de Mulher", ela escreve que os relatos femininos são outros. Não há heróis nem façanhas incríveis. Ao colher depoimentos de soviéticas sobre a Segunda Guerra Mundial, Svetlana constata que, no centro das histórias, está sempre o fato de não querer e não aguentar morrer — "e é ainda mais insuportável e angustiante matar".
O sofrimento das mulheres num conflito é marcado também por violência sexual, abandono, cuidado com os feridos e a perda de filhos, maridos, pais e irmãos. Um saldo silencioso das disputas entre os varões.
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