Cristina Fibe

Cristina Fibe

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Decisão da Justiça intimida e silencia quem expõe violência contra a mulher

Há algo de podre no reino de Santa Catarina. Ali, bem debaixo dos nossos narizes, uma jornalista — mulher — foi condenada a um ano de prisão em regime aberto e a uma multa de R$ 400 mil, desproporcional à sua renda, por fazer o seu trabalho.

Schirlei Alves é uma das jornalistas mais sérias e respeitadas do país. Uma das poucas dispostas a arriscar a pele e a tranquilidade denunciando homens poderosos, expondo violências sofridas por meninas e mulheres.

Em novembro de 2020, ela publicou no Intercept uma reportagem que, de tão importante, motivou passeatas pelo país e a aprovação de uma lei para garantir a dignidade de vítimas de violência sexual e de testemunhas durante os julgamentos.

A Lei Mariana Ferrer existe porque Schirlei amplificou a voz da modelo e influenciadora, humilhada em pleno tribunal. Quem não se lembra do vídeo no qual Mariana implorava por respeito, chorando, depois de ser desqualificada pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho?

Ela estava ali para depor no processo em que o empresário André de Camargo Aranha foi acusado de estuprá-la. O crime teria acontecido em dezembro de 2018, na boate Café de la Musique, em Florianópolis. Mariana, então com 21 anos, trabalhava como promotora do evento, e disse acreditar ter sido dopada e violentada no local.

A Justiça não entendeu assim, e Camargo Aranha foi absolvido. Segundo a reportagem, o promotor do caso, Thiago Carriço de Oliveira, sustentou que não havia como o empresário saber que ela não tinha condições de consentir a relação. O juiz Rudson Marcos concordou, em decisão que depois seria confirmada na segunda instância.

A tese de que não houve intenção — dolo, na linguagem jurídica — de estuprar foi explicada no Intercept com o uso da expressão "estupro culposo", que não foi usada na ação.

É artifício comum no jornalismo traduzir e simplificar termos jurídicos (ou econômicos, por exemplo), para ampliar a compreensão do texto. No mesmo dia, o Intercept publicou nota esclarecendo que a expressão foi usada "para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo".

O tratamento dado à modelo no tribunal causou comoção no país inteiro. O ministro do Supremo Gilmar Mendes tuitou naquele mesmo dia: "As cenas são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram".

Continua após a publicidade

Três anos depois, o juiz Rudson Marcos foi penalizado pelo Conselho Nacional de Justiça, por ter permitido os "excessos de comportamento do advogado de defesa do réu".

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF e do CNJ, afirmou que Rudson não cumpriu o papel que se espera de um magistrado. "Cabe ao juiz evitar que a testemunha ou a vítima seja constrangida e humilhada. Foi uma conduta grosseira e machista que precisava da intervenção do juiz. As imagens divulgadas fazem com que as vítimas de violência sexual passem a temer o Judiciário", disse Barroso.

Apesar de a advertência dada ao juiz confirmar a importância da denúncia feita por Schirlei Alves no Intercept, foi ela quem sofreu a maior punição. Processada por difamação tanto pelo juiz quanto pelo promotor presentes à audiência, ela perdeu em ambos os casos, em decisão que faz com que jornalistas também passem a temer o Judiciário.

A repórter recorre da decisão. Para que mulheres vítimas de violência não sejam mais silenciadas, humilhadas, constrangidas e mortas, é fundamental que o Poder Judiciário garanta que jornalistas como Schirlei possam fazer o seu trabalho. E reveja sentenças proferidas num ambiente em que o próprio sistema de Justiça fracassou.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes