Caso Ana Hickmann escancara obstáculos no caminho das vítimas de violência
Negar, atacar e inverter os papéis de vítima e agressor. Essa estratégia tem nome: Darvo, na sigla em inglês (deny, attack and reverse victim and offender). Quanto mais avança a luta das mulheres pelo direito à própria dignidade, mais essa tática é usada por homens denunciados por abusos.
Apesar de o país ter uma das legislações mais avançadas do mundo no combate à violência doméstica, a Justiça brasileira ainda não consegue garantir a proteção às mulheres sem que elas sejam revitimizadas.
A Lei Maria da Penha é ampla, passa pelas violências psicológica, moral, sexual e patrimonial. Mas o mais frequente é que as delegacias sejam procuradas quando há agressão física, quando o feminicídio está à espreita.
E, mesmo assim — com laudos, hematomas e ossos quebrados —, essa mulher passa a enfrentar uma longa e arriscada maratona quando entram em jogo o contra-ataque do abusador e as subjetividades de quem deveria aplicar a justiça. Uma corrida em que não se vê a linha de chegada, de tão distante.
Apesar de recente, o caso Ana Hickmann já começou a ilustrar as distorções que vão se impondo mesmo a quem é cercada de privilégios.
Depois de a agressão se tornar um escândalo nacional, o ex-marido da apresentadora foi a público negar ter sido violento. Com a divulgação do boletim de ocorrência, mudou a versão e admitiu ter mentido.
Em entrevista ao UOL na segunda-feira seguinte à briga, chamou a discussão de uma "desinteligência entre casais" e se disse preocupado com a própria vida dali pra frente.
O tempo foi passando, e o tom do discurso foi subindo. No último domingo, Alexandre Corrêa deu entrevista à "Quem" antes de o depoimento mais longo de Ana Hickmann ir ao ar, na TV Record.
No terceiro relato, atribuiu toda a responsabilidade à mulher, que teria bebido e sido "extremamente agressiva". E afirmou que "ela simplesmente se tornou a rainha Elizabeth, tomou posse de tudo e me afastou como se eu fosse um verme maldito".
Dias depois, foi a uma rádio e encerrou a entrevista dizendo estar passando mal, de tanta emoção. Os apresentadores o acolheram, afirmando que o seu sofrimento era nítido, que ele perdeu a família "do nada". Negar, atacar e inverter os papéis.
A tática alcançou a Justiça. Segundo a Folha de S.Paulo, Alexandre Correa entrou com medida judicial contra Ana Hickmann por suposta alienação parental: ela estaria atuando para dificultar a convivência do filho com o pai, de quem a criança herdou o nome.
Quer dizer: o que afasta o menino não é o comportamento violento de seu pai, é o fato de a mãe buscar os seus direitos — também para proteger a sua cria.
O preocupante é que muitas vezes esse discurso cola na Justiça, e mães no país inteiro têm sido obrigadas a entregar seus filhos nos braços dos seus abusadores. Uma violência que até a ONU já pediu para o Brasil corrigir, revogando a Lei de Alienação Parental.
A única vantagem da superexposição desse caso, que está sendo acompanhado como um reality show macabro, é escancarar e corrigir os obstáculos colocados no caminho das vítimas de violência doméstica.
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