Cristina Fibe

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Opinião

Aborto: por que a discussão precisa ir além do ser a favor ou contra?

É necessário um exercício de linguagem para discutir um tema que divide o país. A pergunta não é: você é a favor ou contra o aborto?

A pergunta é: você é a favor de torturar meninas e mulheres que foram estupradas e buscam o direito de interromper uma gravidez fruto de violência?

Vê algum problema em uma pessoa ser obrigada a levar adiante a gestação de um feto que não tem condições de sobreviver? É a favor de prender e humilhar crianças e adultas que correm risco de morrer no parto?

O Brasil prevê o aborto legal quando a gravidez é decorrente de estupro; em caso de anencefalia fetal; e de risco de vida à mulher. Em qualquer outra situação, ela é obrigada a levar adiante a gestação, mesmo que não desejada, não planejada e diante do abandono completo do pai da criança.

Mas este texto não é sobre o avanço necessário e urgente nessa discussão. À beira de 2024, ainda precisamos discutir retrocessos nos direitos já garantidos.

Nesta semana, passou a vigorar em Maceió uma lei que obriga meninas e mulheres a ver imagens de fetos antes de interromper legalmente uma gravidez.

Pela nova diretriz, que vai contra qualquer princípio de garantia à dignidade humana, "os estabelecimentos da rede municipal de saúde ficam obrigados a orientar e esclarecer às gestantes sobre os riscos e as consequências do abortamento nos casos permitidos pela lei". Isso inclui apresentar às pacientes, "de forma detalhada e didática, inclusive com ilustrações, o desenvolvimento do feto semana a semana".

A lei obriga os profissionais de saúde a mostrar imagens dos métodos cirúrgicos usados no procedimento — mesmo que ela só precise, por exemplo, ingerir um remédio. Isso significa que uma criança vítima de estupro pode ser obrigada a assistir a um vídeo de aspiração intrauterina ou curetagem.

Tem mais: ela vai precisar encarar uma lista de "possíveis efeitos colaterais físicos e psíquicos". Segundo a Câmara Municipal de Maceió, composta por 21 homens e 4 mulheres, as consequências do abortamento legal incluem "comportamento autopunitivo, transtorno alimentar; sentimentos de remorso e culpa; depressão e oscilações de ânimo e choro desmotivado, medos e pesadelos".

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Não sei como os vereadores de Maceió chegaram a essas conclusões. O que posso afirmar é: uma criança ou uma mulher obrigada pelas circunstâncias a interromper uma gravidez certamente sofrerá muito mais ao se ver diante de imagens de fetos, vídeos de aspiração intrauterina ou um discurso que a induza à culpa, à depressão e mesmo aos citados pesadelos.

Infelizmente, Maceió não está sozinha na criação de obstáculos que torturam meninas e mulheres. Muitas delas, mesmo menores de idade vítimas de estupro de vulnerável, são perseguidas e enfrentam longas disputas judiciais ao buscar seus direitos.

A cidade de São Paulo, conhecida por garantir o acesso ao aborto legal, suspendeu nesta semana o procedimento em um dos hospitais de referência nesse tema, sem informar quando ele será retomado.

No mês passado, uma mulher indígena morreu durante o trabalho de parto em Guarapuava, no Paraná, depois de ser estuprada e ter o acesso ao aborto legal negado. Em nome de uma suposta defesa da vida, Mirian Bandeira dos Santos morreu aos 35 anos, deixando órfãos dois filhos.

Por isso é importante usar as palavras certas e falar dos maus-tratos e dos riscos que se impõem a quem busca um direito previsto em lei. É preciso estancar o retrocesso para evitar que mais meninas e mulheres sejam vítimas de quem supostamente se importa com a vida. De que vida estamos falando?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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