Cristina Fibe

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Opinião

Caso Julieta: fetiche da violência é armadilha para memória da artista

Julieta Hernández, artista, imigrante e palhaça, não queria que ninguém tivesse medo. Ela viajava de bicicleta pelo país, levando alegria até crianças —e adultos— com pouco acesso a cultura. Crianças como os cinco filhos do casal que agora está preso, acusado de matá-la.

Um assassinato cruel, que comoveu Brasil e Venezuela, sua terra natal, aonde ela estava indo reencontrar sua família. A gente tenta entender. E começa a consumir todos os detalhes que são divulgados, pra ver se coloca alguma lógica ao que nunca vai fazer sentido.

Só que tudo o que lemos e comentamos vem dos relatos de um delegado, que por sua vez reconstitui a cena a partir das palavras dos suspeitos.

Então, nos chocamos, compartilhamos e reverberamos as histórias contadas pelas únicas duas pessoas adultas que sobreviveram ao episódio. Pelo que sabemos até agora, portanto, estamos repetindo os relatos dos dois assassinos sobre os minutos finais da vida de uma artista que não pode mais falar por si.

Não precisa saber muito para imaginar que não é assim que Julieta gostaria de ser lembrada. Além do risco de repetir histórias mentirosas, em busca de justificativa —roubo de celular, ciúmes—, como se algo pudesse explicar tamanha perversidade, sem querer desrespeitamos a memória de uma artista, e com isso as famílias que ela deixou.

Numa carta publicada nesta semana, Sophia Hernández, sua irmã, lamenta as "informações e detalhes horríveis que fizeram muitos terem medo". "Julieta sempre rejeitou o medo", ela escreve, antes de contar do leite que a humorista comprou pras cinco crianças, dando outra visão daquela história trágica, numa espécie de grito por respeito.

Para a artista e quem a conheceu, os detalhes divulgados são invasivos, humilhantes e injustos.

Conversei com a jornalista Niara de Oliveira sobre a maneira como esse caso vem sendo noticiado. Ela, que é uma das autoras do livro "Histórias de morte matada contadas feito morte morrida", diz que, "em tempos de barbárie, tudo é barbárie, e a própria denúncia de atos bárbaros se torna bárbara".

"Quase nada mais nos comove. Não basta mais dizer que uma mulher foi brutalmente assassinada, é preciso mostrar, relatar nos mínimos detalhes a brutalidade a que foi submetida", afirma a escritora. "A essa necessidade de saber, ver e consumir os detalhes do horror chamamos de fetiche da violência. Até movimentos feministas tarimbados e com tempo de estrada têm caído nessa armadilha."

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No que diz respeito à violência contra nós mulheres, nunca vão faltar detalhes sórdidos, trágicos, sanguinários. Niara lembra outros casos: "Em outubro de 2023, no Rio Grande do Sul, um homem matou uma mulher aparafusando sua cabeça depois de uma longa sessão de tortura, narrada em detalhes. No início de 2024, ainda nesse período de 'festas', outro homem matou, esquartejou e concretou na geladeira de casa os pedaços do corpo de sua esposa antes de denunciar o desaparecimento dela à polícia".

"Não é à toa que dizem que o diabo mora nos detalhes, é neles também que somos seduzidos e envolvidos na trama do fetichismo da violência contra a mulher", afirma Niara. "Tem quem se delicie —mesmo sem perceber e mesmo que seja com a 'boa intenção' da denúncia— com a imagem ou a descrição do martírio de uma mulher."

Mesmo depois de mortas, devemos ter o direito à preservação do nosso corpo, da nossa memória e da nossa intimidade. E isso é responsabilidade também de quem repercute com indignação assassinatos trágicos como o de Julieta.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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