Misturar fé com abusos ajuda a empurrar os crimes para a impunidade
Em Socorro, no interior de São Paulo, um homem de 49 anos foi preso nesta semana sob suspeita de estuprar mulheres durante "tratamentos espirituais".
As acusações, feitas por oito vítimas, vão de 2017 a 2023. A Polícia Civil batizou a operação de "João de Deus socorrense", em referência a outro ex-líder espiritual, esse já condenado a quase cinco séculos de prisão por violentar sexualmente suas fiéis durante décadas.
O seu simulacro paulista se dizia um curandeiro com poderes superiores e atraía suas vítimas prometendo apoio médico e espiritual. E ainda cobrava a consulta. A polícia afirma que ele se aproveitava da fragilidade física e emocional das mulheres para estuprá-las.
Mas, um dia, elas começaram a se falar. Montaram um grupo de WhatsApp, conversaram sobre os abusos e procuraram a delegacia. Agora, ele vai responder por estupro, exercício ilegal de medicina, curandeirismo, violação sexual mediante fraude e posse irregular de arma de fogo.
Essa mistura da prometida elevação espiritual com abuso não é, infelizmente, incomum. E nem é incomum que os crimes ocorram ao longo de anos e as vítimas se multipliquem por centenas.
No centro espiritual de João Teixeira —que, aliás, segue aberto—, as fiéis são orientadas a aceitar qualquer coisa que seja feita a elas.
O "Guia para Visitantes", manual sobre o funcionamento da Casa de Dom Inácio, avisa que "as entidades fazem o que você precisa, não necessariamente o que você quer". É preciso, portanto, aceitar práticas que ache esquisitas, suspeitas ou violentas, em nome de uma suposta iluminação espiritual.
"Simplesmente permita que o trabalho se faça e confie: o que está acontecendo é exatamente o que deve acontecer", diz o guia.
O uso da fé confunde, dificulta o reconhecimento da violência e empurra os abusos para a prescrição e a impunidade.
Foi assim na seita internacional "A Família", fundada pelo californiano David Berg, em 1968, e que se espalhou mundo afora, contaminando também o Brasil.
Numa série de reportagens publicadas em Universa, a jornalista Heloísa Barrense mostra que os líderes do grupo diziam que o sexo seria uma forma de aproximação com Deus, o que justificaria estuprar as inúmeras crianças que cresciam ali, isoladas do resto do mundo.
Sem direito a ir a escola, acessar a internet ou conviver socialmente, ficava quase impossível para meninos e meninas se livrarem de seus abusadores.
Uma das sobreviventes, Alyssa Veiga contou à repórter que passou por muitos assédios mesmo depois de deixar a seita: "Baixei a cabeça e normalizei coisas absurdas. Está sendo um processo longo pra tirar essa lavagem cerebral, minha mente não funcionava".
Alyssa ainda circulou por outros campos da espiritualidade, mas disse evitar lugares que peçam restrições, porque esse é um dos gatilhos para reviver o trauma. Na seita que leva o nome da família, qualquer questionamento era visto como "armação do diabo".
Essa é uma das bandeiras vermelhas percebidas por quem já foi vítima. Se você está se aproximando de um grupo ou guru espiritual que não aceita críticas, impõe rotina rigorosa, isolamento social, impede o acesso ao celular e à televisão, ou associa a "energia sexual" às "energias de cura", fique alerta a abusos. E procure ajuda do lado de fora.
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