Calar Luana e dar voz ao agressor de Maria da Penha: os lados da misoginia
Quando terminou de dar entrevista a uma apresentadora com um milhão de seguidores, o homem que tentou matar Maria da Penha agradeceu pelo espaço tampando a boca com a mão.
Fez um gesto de silenciamento e disse: "Fiquei 40 anos amordaçado".
Foi a mentira final depois de uma série de ataques para desqualificar a mulher que motivou uma das mais importantes leis do mundo contra a violência doméstica.
E um deboche: o sinal da mordaça vem sendo usado como símbolo do silenciamento real que assola vítimas de homens que se julgam donos dos nossos corpos e da nossa voz. O condenado por tentativa de feminicídio surrupiou o gesto usado por jogadoras de futebol, em apoio às colegas silenciadas depois de acusar um técnico de assédio sexual e moral.
Dias antes da live com o agressor de Maria da Penha, a skatista Rayssa Leal posou para fotos fazendo o mesmo gesto de mordaça. E explicou: "A gente tem que apoiar e olhar mesmo para tudo que está acontecendo; não é só um protesto, é bem mais que isso".
Aos 16 anos, Rayssa dá o exemplo à apresentadora de 73. Leda Nagle, quando convida um violador de mulheres a "contar a sua versão", apela à velha falácia em que se apoiam jornalistas que, de cima do muro, já escolheram seu lado.
A alegada imparcialidade que dá palco a um homem que colocou a mãe de suas filhas na cadeira de rodas tem uma consequência nada isenta: fortalece agressores, enfraquece vítimas, questiona a palavra das mulheres, reforça os estereótipos de "mentirosa" e "vingativa" que servem ainda hoje para que feminicidas e estupradores escapem da prisão.
É, de modo direto e nada isento, uma nova agressão à mulher que precisou apelar a uma corte internacional para obter justiça.
Maria da Penha, que levou um tiro nas costas enquanto dormia, em 1983, e depois, já sem o movimento das pernas, viu o marido tentar eletrocutá-la para terminar o serviço, só conseguiu reparação à beira da prescrição do crime.
Foram quase duas décadas de luta até a condenação. E agora, 18 anos depois da aprovação da lei que leva o seu nome, a vítima se vê tendo a sua palavra e a sua índole colocadas em xeque, num espaço concedido por outra mulher.
É a falsa liberdade de expressão que presta um serviço à misoginia. E que tem amplo apoio entre as mesmas pessoas que defendem que Luana Piovani fique calada. Liberdade para quem?
O silenciamento das mulheres, seja sob que argumento, só serve a um propósito: perpetuar crimes. Proibir a atriz e ativista de expor as violências patrimonial, psicológica e processual que sofre impede que se amplifique a conscientização sobre esses temas. Impede a própria Luana de denunciar as agressões e, no limite, de proteger a criação de seus filhos.
A mordaça nunca coube nos homens. Ela só serve, aqui ou em qualquer lugar, para as mulheres.
Deixe seu comentário