Caso Kevin Spacey: por que é difícil admitir que nosso ídolo é um abusador?
Quando a gente é fã de alguém, essa pessoa é genial no que faz e o trabalho dela mexe com a nossa memória emocional, é difícil demais aceitar que ela possa ser, além de talentosa e carismática, abusiva e criminosa.
Como admitir que, enquanto fazia sucesso e ganhava os mais importantes prêmios do mundo, o nosso ídolo deixava violência e traumas pelo caminho?
Kevin Spacey estava no auge quando foi acusado de atacar sexualmente homens bem mais jovens que ele, alguns menores de idade.
O ator era protagonista e produtor executivo de "House of Cards", uma das séries de maior audiência da Netflix, quando as primeiras denúncias chegaram à imprensa, impulsionadas por um movimento de mulheres, o MeToo.
Seu contrato foi interrompido, e o intérprete de Frank Underwood ainda precisou pagar uma indenização à produtora da série. Foi banido também de Hollywood e deixou de trabalhar na indústria que já tinha dado a ele dois Oscars ("Beleza Americana", 2000, e "Os Suspeitos", 1995).
Depois, foi absolvido na Justiça por algumas das alegações, em processos que correram nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Neste mês, novas acusações contra o ator vieram à tona num documentário em duas partes feito pela rede de TV britânica Channel 4. "Kevin Spacey: A História Não Contada", exibido no Brasil pela Max, reúne dez depoimentos, nove deles inéditos, de homens que dizem ter sido violentados pelo ator.
Os relatos sublinham o exercício de poder sempre presente nos crimes sexuais. O que vemos ali é um profissional que usaria sua posição no mercado e seu sucesso para criar armadilhas. Atrai presas mais fracas do que ele, consciente de que terão dificuldade para escapar e denunciar abusos, as encurrala e violenta.
Os homens que dizem ter sido vítimas de Kevin Spacey detalham reações bem parecidas às relatadas por mulheres — as maiores vítimas desse tipo de crime.
O corpo congela, você não consegue controlar a resposta ao abuso, e o processo de entender o que passou e dar nome à violência pode demorar anos, assim como a cura do trauma.
Outra trinca infalível, em homens e mulheres submetidos à violência sexual: vergonha, culpa e medo. A vítima — como a sociedade — procura algo no próprio comportamento que justifique o abuso.
É sempre mais fácil pensar que mudar a nossa própria postura é capaz de nos proteger. Melhor do que imaginar que há abusadores em todo lugar e que muitas violências não podem ser evitadas. Só que aí vêm a vergonha, a ideia de que "deixou acontecer", o pavor de denunciar e expor a intimidade, ter o corpo examinado. E o medo de ninguém acreditar.
Pior ainda quando os abusadores são ricos, famosos, sedutores: quem vai bancar a palavra do mais fraco? Quem vai deixar de proteger uma pessoa que ama, ainda que seja o amor platônico das distantes relações com ídolos?
Será que a gente está preparada pra essa conversa?
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