Cristina Fibe

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Opinião

Torcida por Flávia: ser mãe solo e buscar medalha olímpica é um ato heroico

Hoje, às 14h45, o Brasil inteiro vai torcer pela paranaense Flávia Maria de Lima, na prova de atletismo de 800m. Mas não só pela classificação.

É preciso torcer pra que a atleta de 31 anos não perca a guarda da sua filha de 6, e pra que o assédio judicial que ela sofre não acabe com o seu patrimônio nem com a sua estrutura física e psicológica pra continuar treinando.

Flávia vem dividindo pelas redes sociais os abusos cometidos por seu ex-marido. Quando eram casados, a violência psicológica a impedia de alcançar o nível de excelência de antes. Depois do divórcio, continuou infernizando a vida dela pra mostrar que marido nenhum controla a mulher por amor.

É um exercício de poder e dominação, contra o qual nem sempre o sistema judiciário está preparado para lutar.

Fosse por amor, esse homem — vamos chamá-lo de genitor — preservaria um ambiente saudável e seguro para que sua filha fosse criada por uma profissional de sucesso, além de mãe sobrecarregada. Em vez disso, a cada competição, Flávia precisa se preocupar com notificações judiciais e o fantasma do risco de perder a filha.

Não foi à toa que os desabafos da atleta causaram comoção nacional. O que ela enfrenta é só um exemplo do que passam milhares de mães solo num país em que homens abandonam seus filhos todos os dias, por muito menos do que uma medalha olímpica.

Responsáveis únicas pelo bem-estar e por todos os direitos garantidos às crianças pela Constituição, essas mães em geral precisam acumular os trabalhos domésticos com os que rendem algum dinheiro. Criam tentáculos que nem a natureza explica para proteger tudo, sem ter, nem de longe, as mesmas condições de um homem para atingir suas metas.

Não há pensão que compense o impacto desse esforço sobre as carreiras dessas mulheres — e essa é uma conta que nem genitores e nem juízes sabem fazer.

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No livro "As abandonadoras: histórias sobre maternidade, criação e culpa" (editora Zahar, com tradução de Eliana Aguiar), a jornalista Begoña Gómez Urzaiz escreve que, em geral, "se um pai não está criando seu filho, nem que seja meio a meio ou até um quarto, é porque ele não quer. Já uma mãe, é porque não pode".

Ao estudar raras mães abandonadoras, a autora percebeu que a necessidade de batalhar por dinheiro é o que explica a maior parte dos casos. Porque nem sempre é possível fazer isso e assumir todos os cuidados do dia a dia.

A fórmula para equilibrar os pratos, ela resume, é "andar na corda bamba do trabalho e dos cuidados sem tentar se jogar; fazer tudo um pouco mal, esquecer qualquer grandeza".

Ser mãe e buscar uma medalha olímpica já é ato heroico suficiente. Essa é uma das lições que a primeira Olimpíada com paridade entre homens e mulheres nos dá: há um abismo a ser transposto, e ele vai muito além dos dados.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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