Quantas acusações são necessárias até que uma mulher seja ouvida?
As acusações contra o ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida deixaram o Brasil em choque na semana passada. Mas não o governo federal. Nos corredores da Esplanada e do Planalto, já se sabia das importunações sexuais denunciadas pela ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial.
E, se é um avanço na luta pelos direitos das mulheres afastar o acusado do cargo, é também preciso reconhecer que isso só foi feito por pressão da imprensa e da opinião pública. Não fosse o nome de Anielle ter sido divulgado — à revelia dela — pelo portal "Metrópoles", ela seguiria silenciada e sem reparação.
As reações às notícias mostram que o seu silêncio tinha razão de ser: antes de ser afastado, Silvio Almeida recebeu inúmeras manifestações de apoio incondicional, enquanto ela era atacada e colocada em dúvida.
Entre a ação do governo e a abertura das investigações, Anielle teve até a competência para o cargo questionada. Quer dizer, além de sofrer uma violência, a ministra precisaria reagir segundo preceitos imaginados por observadores externos, que nada sabem sobre o trauma que passou e quanto lhe custa lidar com ele.
Conforme vieram à tona acusações feitas por outras mulheres, o valor da palavra de Anielle foi subindo, e os ataques, diminuindo. Mas quantas são necessárias para que a fala de uma mulher seja considerada?
Num crime que quase sempre acontece às escondidas e sem deixar vestígios, é preciso ter cuidado para que um discurso baseado em ideias distorcidas de presunção da inocência não reforce um sistema que subjuga as mulheres e perpetua as violências sexuais e institucionais.
No devido processo legal que o advogado, professor e filósofo Silvio Almeida enfrentará a partir de agora, é obrigatório o julgamento com perspectiva de gênero, ou seja, que não reproduza as violências de uma sociedade misógina e dê especial valor à palavra da mulher.
Evocar "materialidade", insinuando que a palavra da vítima é insuficiente, divulgar mensagens que expõem Anielle ou se dizer alvo de calúnias e complôs só reforçam o uso da cartilha dos acusados de violência sexual. Negar, atacar e inverter os papéis de vítima e agressor. Já vimos esse filme.
Mas a culpa não é de Anielle, e não foi Anielle quem causou uma crise no governo. O responsável por essa crise é Silvio Almeida — com a ajuda de quem, no alto escalão, soube das denúncias antes. E nada fez.
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