Cristina Fibe

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Opinião

Aplausos legitimam dor de Gisèle Pelicot, mas comoção não serve para todas

Gisèle Pelicot, 72 anos, virou símbolo da França depois de ter sido estuprada por mais de 50 homens levados até ela, desacordada, por seu marido, com quem foi casada por 50 anos.

O rosto e o nome de Gisèle já estão para sempre atrelados aos crimes que sofreu durante mais de uma década. A imagem dela está muito mais disseminada do que a de Dominique Pelicot, 71 anos, o homem que, diante do júri, afirmou: "Eu sou um estuprador. Como os outros nesta sala".

Os "outros" são os homens que ele mesmo convidou para violentar a esposa, dopada por ele para que seu corpo fosse violado com mais facilidade.

Sobre Dominique e "os outros", não sabemos quase nada além da crueldade com que agiram, todos cúmplices, sem que nenhum deles fizesse algo para que as violências em série parassem.

"Todos eles sabiam", disse Dominique. No tribunal, porém, só 15 dos 50 acusados admitiram o estupro. A maior parte deles mentiu que pensava fazer parte de um ato sexual. De uma fantasia.

Mas cometer qualquer ato de cunho sexual com uma mulher desacordada ou sem condições de consentir é crime — mesmo que seja sua esposa —, e isso vale para a França, como vale para o Brasil. Não é sexo, como alguns veículos de imprensa vêm chamando, erroneamente. É estupro.

A própria Gisèle precisou dizer essa frase no tribunal, confrontada por advogados que tentavam defender o indefensável: "Um estupro é um estupro". Não há como relativizar esse crime.

E, mesmo diante das provas em vídeo, a mulher que agora é símbolo de violações em série ouviu que teria problemas com álcool e seria "cúmplice" do que aconteceu. Rebateu dizendo que "nem por um segundo" deu o seu consentimento, e que se sentia "humilhada" pelas declarações.

O próprio Dominique admitiu que a ferramenta usada para recrutar estupradores deixava claro o crime que cometeriam: a sala de bate-papo onde tudo era combinado era intitulada "Sem ela saber". Uma ferramenta online, hospedada num site com conteúdo pornográfico, acessível para qualquer pessoa. Como são, aliás, inúmeros sites que disseminam cenas de violência como aquelas a que Gisèle foi submetida.

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Um tipo de pornografia que circula livremente pelo mundo, explorando e enaltecendo violações contra crianças e mulheres em situação vulnerável. O que homens como Dominique, esposo, pai e avô, fazem diante dessas imagens? Será que Dominique é uma exceção?

E as dezenas de homens que ele recrutou, são exceções? São maníacos? Quantas vezes somos capazes de usar essa desculpa e fingir que, uma vez que esses homens sejam condenados e presos, o problema estará resolvido?

É preciso que uma mulher seja estuprada cerca de 200 vezes em sua própria casa, dopada e filmada, pra que não precise se esconder e ter vergonha dos crimes que sofreu? Pra que a dor dela seja legitimada e ela saia da corte aplaudida?

É bonita a comoção na França em torno de Gisèle Pelicot. É uma pena, porém, que seja seletiva, e que centenas de milhares de outras mulheres não tenham a sua dor reconhecida e reparada por uma sociedade em constante negação.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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