Contém spoiler: 'Disclaimer' mostra que pior mãe é aquela que sente prazer
Primeiro, um aviso — não de gatilho, mas de spoiler: se você ainda não terminou "Disclaimer", salve este texto para depois.
Vou estragar o final para quem não assistiu à série da Apple TV, dirigida pelo mexicano Alfonso Cuáron, que está sendo considerada um dos principais lançamentos do ano.
São as últimas cenas que dão sentido à trama de cancelamento da protagonista, e cujos diálogos grudam na cabeça de quem vê. Ao menos na das mulheres.
Depois de ser humilhada e rechaçada pelo marido de duas décadas porque um desconhecido aponta que ela teve, numa certa viagem, um amante, a personagem interpretada por Cate Blanchett finalmente consegue ser ouvida.
Não, aquilo não foi um romance. Ela tinha sofrido uma violência, e a escolha de guardar o segredo foi feita para proteger a si própria e à sua família do trauma que preferiu carregar sozinha.
O marido não consegue esconder o seu apaziguamento com a notícia. Ele sai do estado de desespero que a ideia da traição lhe causara. Ao receber um pacote anônimo com fotos antigas de sua mulher fazendo poses sensuais, ele desaparece sem dar satisfação.
Falta ao jantar que ela preparava, para de atendê-la, a deixa no mais completo silêncio enquanto enche a cara e dirige perigosamente pelas ruas de Londres. Quando consegue voltar a si, a expulsa de casa sem chance de argumentar.
O quadro muda quando o marido, interpretado por um irreconhecível Sacha Baron Cohen, escuta de um outro homem que não era nada daquilo. As fotos eram fruto de algumas horas de terror, em que sua mulher havia sido repetidamente violentada e ameaçada.
Tinha sido um engano. Tinham se esquecido de escutá-la.
O marido confronta o informante que o induziu a erro: "Como você não sabia? Por que você não duvidou?". Ele diz o mesmo. "Por que você não duvidou?"
Ninguém questionou a história que estava sendo contada por um terceiro elemento, que nem testemunha dos fatos foi. É fácil e rápido crucificar alguém se a narrativa confirmar o que estamos programados para acreditar.
E acreditamos que merece o inferno a mãe que prioriza o seu prazer em detrimento dos cuidados com o filho. Uma mãe que goza é uma mulher terrível, que merece perder tudo, e isso quase ninguém, de nenhum lado da tela, parece capaz de questionar. Mesmo que, ao longo de seis episódios, ela não consiga contar sua história.
Quando esse silenciamento é rompido — à força —, o ódio que o marido sente some. Ele pede perdão. E aí vem o diálogo que dá sentido a tudo, e não só à série.
Ela diz ao marido: "Sei que deveria te perdoar. Mas não consigo. Porque você está aceitando a ideia de eu ter sido violentada por alguém com muito mais facilidade do que a ideia desse alguém me dando prazer. Parece até que você está aliviado por eu ter sido estuprada. E isso eu não sei como perdoar".
Esse diálogo final é a ilustração cruel de uma realidade que as mulheres reconhecem: a violência não está só em quem comete o crime sexual. Não está só nos extremos, no marido que dopa a esposa para que outros homens a estuprem ou no estranho que segura uma arma.
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Quero receberA violência está também nos gestos pequenos, no impulso em condenar vítimas, na vista grossa que se faz para agressores, no silenciamento das mulheres e no julgamento de seu prazer.
A violência se perpetua porque existe um pacto social para que isso aconteça. Não basta pedir perdão.
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